domingo, 24 de abril de 2011









Don Giovanni

Pelas 18h 50m do dia 8 de Agosto de 2007, Renata chegou com a irmã a Staré Mesto, Ovocný trh 1, ao “Stavovské Divadlo” (“Teatro dos Estados”), o mais antigo Teatro de Praga, célebre por ser o lugar onde, em 29 de Outubro de 1787, Wolfgang Amadeus Mozart dirigiu a estreia de “Don Giovanni”, precisamente a ópera a cuja representação elas iam agora assistir.
Ao entrar na sala de espectáculos do “Teatro dos Estados”, a atenção de Renata foi convocada para a talha dourada, magnificamente esculpida, que revestia e adornava as galerias e os camarotes distribuídos por vários andares. Deliciou-se a observar a opulência dos candelabros e a extraordinária riqueza das pinturas clássicas do tecto. Quanto fausto! Quanta magnificência! Sentiu-se, ela própria, uma princesa, por lhe ser dado o privilégio de, naquele Teatro, assistir à representação da “ópera das óperas”.
Quando a orquestra sinfónica, posicionada entre a plateia e o palco, iniciou a apresentação de “Don Giovanni”, a sala foi invadida por uma onda gigante de encantamento.
Depois, a cortina subiu, e Don Giovanni, mascarado, saiu escorraçado da casa de Dona Ana, que ele acabara de tentar seduzir. Perseguido pelo Comendador, pai daquela, travou-se um duelo entre ambos, acabando o Comendador por ser morto às mãos de Don Giovanni. Assim se iniciou este drama cómico em dois actos e cinco cenas.
Em toda a sua actuação, Don Giovanni encheu o palco. Era um homem alto, elegante, a quem as vestimentas de fidalgo de Sevilha do sec. XVII assentavam que nem uma luva. Os olhos eram surpreendentemente expressivos, e o cabelo, preto e brilhante, esticado para trás e apanhado num rabo-de-cavalo, dava um refinado encanto à figura do depravado sedutor.
A voz era grave e possante, com um timbre aveludado, e as suas estrondosas gargalhadas de escárnio enchiam o ar de hipnotizante dramatismo.
Com a actuação do barítono, a sala do teatro transformou-se num carrossel mágico, capaz de transportar as mulheres a galáxias nunca antes exploradas.
Assim era Don Giovanni!
No final da actuação, quando o intérprete voltou ao palco, o Teatro veio abaixo com os aplausos.
Deslumbrada com o seu talento, Renata pediu a funcionários do Teatro para a levarem ao camarim dele, pois pretendia felicitá-lo pela actuação. A irmã opôs-se à ideia desde a primeira hora, dizendo que se tratava de uma atitude inusitada e que o cantor não estava ali para ser incomodado pelo público. Indiferente à opinião da irmã, Renata, deixando-a à sua espera na parte superior do Teatro, foi conduzida ao andar de baixo, onde o sedutor, ainda com os trajes da representação, a acolheu com todo o afecto, mostrando-se lisonjeado com a presença e o interesse dela.
De repente, os lábios de ambos, ávidos e sedentos um do outro, beberam-se mútua e reciprocamente. Depois, ele pegou na mão dela, conduziu-a apressadamente para fora do camarim e, correndo por corredores labirínticos e escuros, cobertos pela neblina do final da actuação – a neblina do momento em que Don Giovanni foi condenado aos infernos, chegaram à saída das traseiras do Teatro. Aí, ambos entraram numa limousine, cujo chauffeur, ao volante, esperava o barítono.
A limousine percorreu as ruas de Praga, passando pela Igreja de Nossa Senhora de Týn, Praça da Cidade Velha, antiga Câmara Municipal com a sua Torre, a Capela de Sacada e o Relógio Astronómico. Depois passou pela Igreja de São Nicolau, atravessou o Rio Moldava numa ponte paralela à pedonal Ponte Carlos – Ponte Mánesùv, passou junto ao Museu Franz Kafka e à Catedral de São Nicolau. De seguida, subiu uma longa rua – Snemovni, até ao castelo de Praga, junto do qual se situava a mansão do barítono.
Entraram e os seus corpos ao rubro deram de beber ao desejo ardente que, naquela noite, os tinha feito sentir uma fatal atracção um pelo outro. O corpo dele, suave e perfumado, desflorou a paixão dela. Amaram-se sem cerimónias, sem limites e sem tréguas, como só se ama uma vez na vida, e para ambos, essa vez foi nessa noite sem fim. Don Giovanni era um sedutor nato e um amante perfeito.
Quando Renata acordou no bairro praguense de Panská, no “Palace Hotel”, já a irmã se encontrava a tomar duche. Recomendou-lhe que se levantasse, ou ainda perderiam o avião de regresso a casa.
Renata recordou-se que, na noite anterior, tinha ido com a irmã ao “Teatro dos Estados” e tinha achado sublime a actuação do barítono que dava voz e corpo a Don Giovanni. No final do espectáculo, quando falara à irmã em irem ao camarim de Don Giovanni felicitá-lo, ela retorquira categoricamente que essa atitude era inusitada e que o artista precisava era de sossego – “Já viste se toda a gente se lembrasse agora de lá ir?” Na sequência da resposta da irmã, ambas tinham abandonado o Teatro para jantar num requintado restaurante de Praga, após o que tinham regressado ao hotel.
O que a irmã nunca viria a saber é que, naquela última noite em Praga, Renata não só tinha ido felicitar Don Giovanni, como também tinha subido com ele ao Olimpo, passando juntos uma noite de deuses.

Isabel Cabral Costa

domingo, 17 de abril de 2011

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
“Dispersão” – Mário de Sá Carneiro


Colo de mãe

O ribombar da trovoada tragava o mundo. Os relâmpagos rompiam impiedosamente o céu, pintado de uma negrura, que parecia anunciar o final dos tempos. A chuva caía com desenfreada raiva. O vento soprava com cólera. O mar revolto anunciava que tinham aberto as comportas do inferno. As ondas rebentavam na praia, vergastando a areia com a violência de um verdugo posto em desassossego.
Os olhos da mulher que, no terraço da “suîte” de um hotel de luxo, contemplava o mar no meio da tempestade, encheram-se de água tenebrosa, que brotou do fundo da sua alma à deriva. A consciência dela era agora um vulcão em erupção, a expelir lavas de desesperada angústia.
O seu olhar fixou a fúria do mar. As águas devolveram-lhe o rosto de um menino que pedia colo a sua mãe. Mas esta, corroída até às entranhas, pelas exigências de uma vida profissional desgastante e avassaladoramente competitiva, só conseguia ver nesses olhos suplicantes e ávidos de amor materno, o fantasma que, a cada instante, queria roubá-la à profissão e sugar-lhe o seu escasso e, por isso, tão precioso tempo.
Esta mãe jamais se detivera a contemplar a limpidez do olhar do seu menino, através do qual e para além do qual, ele deixava ver a sua alma imaculada. Nunca lhe ofertara um sorriso despreocupado, nem nunca existira, ainda que por breves instantes, só para ele.
Jamais o menino soube o que era o doce enroscar no colo da mãe. Nunca conheceu aquele porto-de-abrigo incondicional chamado regaço materno, porque a mãe não tinha tempo para encontrar a paz, e não podia dar aquilo que não tinha.
A mãe do menino, numa permanente e desenfreada agitação, jamais conseguiu encontrar o verdadeiro lenitivo para esse padecimento dos tempos modernos: a cegueira do êxito profissional. Por isso, nunca encontrou tempo para fazer uma verdadeira aproximação ao filho, nem nunca deixou transparecer o seu amor materno, esquecendo-se de ligar o interruptor que encheria de luz o seu coração de mãe e aqueceria a alma do menino.
Os anos decorreram com um ritmo vertiginoso e nessa voragem do tempo, a mãe do menino nunca olhou para trás.
Hoje, o grito dela ecoa a partir do terraço de uma “suîte” de um hotel de luxo no fim do mundo, à beira de uma praia em território da Polinésia Francesa, para onde, escassas semanas depois de o menino ter sucumbido a uma meningite, ela fugiu, na ilusão de, nessas ilhas paradisíacas, obter a paz nunca antes alcançada. Esqueceu-se que, neste mundo, o dinheiro compra quase tudo, mas nunca a paz. Olvidando que nem no Pacífico Sul, nem em qualquer outra parte do planeta, nada nem ninguém pode trazer de volta a uma mãe, o tempo perdido, percorreu, numa aflição, os cinco arquipélagos da Polinésia Francesa - Sociedade, Marquesas, Austrais, Mangarevas e Tuamotu, estando agora instalada num hotel de luxo taitiano em Papeete.
Pobre mãe só! Apenas cheia de dinheiro e de sucesso profissional!
O seu grito é um pranto despedaçado e estilhaçado pelo tempo tão desgraçadamente deitado fora. Por isso, por entre a perdição da insónia nocturna e o inferno da tempestade, ecoam palavras desesperadas que encerram em si toda a loucura vã do remorso que sobra:
- Filho! Por amor de Deus, volta e pede-me colo outra vez!


Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa

domingo, 10 de abril de 2011

                                                                            La Pietà

Há uns anos, numa sexta-feira santa, na Basílica de São Pedro, no Vaticano, a minha atenção foi convocada para “La Pietà”, que me fascinou como um céu cheio de cometas. Não pude deixar de me deter perante a incomensurável riqueza daquela obra de arte legada à Humanidade por Michelangelo Buonarroti que, pelo seu peculiar talento e brilhantismo, ombreia os deuses. Na verdade, a singularidade dessa obra reside na mestria com que aquele de Caprese, aos 23 anos de idade, soube esculpir no mármore, o estado de alma de “sereno desespero” de uma mãe que ampara no seu regaço, o filho cujo espírito partiu já deste mundo. Uma mãe com a alma amortalhada, desfeita em mil farrapos gélidos, segurando seu filho morto – Jesus de Nazaré, o Filho de Deus-Pai Todo Poderoso. Uma mulher, também ela, supliciada e crucificada, despedaçada por uma agonia dilacerante, à deriva num mar de pranto. Não é assim que se sente a mãe cujo filho foi assassinado? De que outra forma se pode descrever a mulher que é fulminada por uma dor do tamanho do mundo? E, no entanto, contemplando a Virgem tão serena na sua dor, somos invadidos por uma inusitada sensação de paz, que se desprende da resignação desta Mulher perante o drama que sobre ela se abateu. Ao apreciar, deslumbrada, este magnífico grupo escultórico de mármore, lembrei-me de tantas mães que perderam os seus filhos, os quais ressuscitaram para sempre na alma delas. E acendi uma vela por todas essas mães, pedindo a Deus que lhes dê sempre capacidade de resignação e de aceitação da sua incomensurável dor, já que esta, nada nem ninguém conseguirá jamais apagar do seu coração. O meu momento de recolhimento e oração foi interrompido por um vozinha miudinha que, atrás de mim, no colo de sua mãe, clamava, em bom Francês de Paris, que queria ir comprar os ovos de chocolate que lhe tinham sido prometidos. Olhei para trás e sorri para o menino sardento. Quando ele, com o seu ar reguila, me devolveu o sorriso, interroguei-me se ele conheceria o verdadeiro significado dos ovos da Páscoa. Saberia ele que o domingo de Páscoa é a ressurreição de Cristo, simbolizada pelo ovo, que representa o nascimento, o retorno da vida? Este é o verdadeiro sentido da mais importante festa da Cristandade, e é o único que eu gostaria de ver preservado no coração de todos e de cada um de nós. Voltei a olhar para trás, desta feita através da bruma do tempo, e vislumbrei, lá muito ao longe, uma menina de cinco anos de idade, sentada no colo de sua mãe que, beijando e afagando a face da menina, lhe explicava o significado dos ovos da Páscoa. A menina sorria docemente, com os dentes cheios de chocolate, e deliciava-se com tudo o que sua mãe lhe ensinava. Bem hajas, querida mãe, por, no salão com lareira da minha infância, na hora do chá e dos scones quentes com manteiga, teres sempre partilhado comigo os teus conhecimentos.

domingo, 3 de abril de 2011

                                                          "Chuva Mágica"


Chovia copiosamente lá fora. A menina adormeceu na sala, junto à lareira.
Sonhou que, sentada numa cadeira de rodas, e sob uma chuva intensa, deslizava num caminho atapetado com musgo e ladeado por vegetação luxuriante.
A dada altura, entrou num jardim, também ele coberto de musgo, cheio de flores coloridas e de árvores frondosas, com nascentes de água cristalina, e onde abundavam esquilos, coelhinhos, hamsters, bâmbis e passarinhos, cujo pipilar se assemelhava a acordes celestiais.
Um anjo cheio de caracóis louros e com o olhar azul e profundo como os oceanos, passeava no jardim. Ao ver a menina, sorriu e, dirigindo-se ao seu encontro, pegou suavemente na mão dela e beijou-a. Explicou-lhe então:
- Este é um jardim que encerra em si a concretização dos sonhos das crianças e nele alcançarás igualmente a concretização do teu sonho. A chuva que abençoa este jardim, é mágica, porque, num carrossel de estrelas multicolores e de música celestial, envolve as crianças num abraço, e os sonhos delas tornam-se realidade. Por isso te convido a dançar comigo à chuva, neste jardim.
Dito isto, voltou a pegar docemente na mão dela para a ajudar a erguer-se da cadeira de rodas, o que ela, atónita, conseguiu fazer sem a menor dificuldade.
Logo de seguida, ela tirou os sapatos para poder sentir nos pés, o afago do musgo e a fresca vitalidade da chuva. O anjo, sorrindo sempre com divina pureza, enleou-a pela cintura e começou a dançar com ela. Envoltos numa nuvem de estrelinhas esvoaçantes multicolores, das quais se desprendia a “Sinfonia dos Brinquedos”, foram percorrendo todo o jardim, acompanhados pelos esquilos, coelhinhos, hamsters, bâmbis e passarinhos, que, aos pares, dançavam em fila atrás deles. O pipilar dos passarinhos que acompanhavam a menina e o anjo, aumentara agora de intensidade, regozijando-se os passarinhos com as gargalhadinhas dela, e sendo perfeita a sintonia entre aquele pipilar e os sons dos instrumentos musicais e dos pequenos brinquedos sonoros da “Sinfonia dos Brinquedos”.
Ela, deslumbrada, sentia-se a menina mais afortunada do mundo, porque, afinal, conseguia dançar.
Quando acordou, a mãe abeirou-se dela sorrindo:
- Adormeceste, meu amor... Chove tanto lá fora! Imagino que o teu sonho tenha sido maravilhoso, porque sorrias sempre e davas muitas gargalhadinhas.
Ela abraçou a mãe e, irradiando felicidade, contou-lhe que tinha tido o sonho mais bonito da sua vida: uma dança, descalça, à chuva, com um anjo, num jardim coberto de musgo, cheio de flores e de estrelinhas esvoaçantes multicolores, rodeada de esquilos, coelhinhos, hamsters, bâmbis e passarinhos, sob os auspícios da “Sinfonia dos Brinquedos”.
– Precisavas de ter visto, mamã, como eu conseguia acompanhar os passos de dança do anjo! Concretizei o meu sonho de dançar!
A mãe, não contendo as lágrimas, que deslizaram pelo seu rosto, como dois fios de prata, colocou o DVD da “Sinfonia dos Brinquedos” a tocar, aproximou-se da filha, tirou-lhe os sapatos, levantou-a da cadeira de rodas, pegou nela ao colo, e, assim, juntinhas, dançaram com mútuo enleio.
Lá fora, a chuva continuava a cair copiosamente.


Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa