domingo, 26 de junho de 2011

UMA RÉSTIA DE SOL NO NOSSO ENTARDECER



A casa está toda iluminada pela paz.

Do piano brotam "Cachoeiras da Serra Op 13, nº 4", de Luiz Costa, tocadas por ti.

Ah, se tu soubesses como o céu beija a terra quando tocas piano!

Lembro-me de ti, tão pequenino, a tocares, mesmo ainda antes de entrares para a escola, com camisa e laçarote, nas audições do Conservatório. Eras tão gracioso! Olhava para ti com o mesmo enleio com que olho hoje, apesar de, agora, já não usares laçarote.

Como cresceste! Não obstante, quando tocas, vejo sempre aquele meu menino pequenino que mal chegava ao piano e que, com as mãozitas, acariciava o teclado, do qual fluíam melodias executadas por querubins.

O mesmo menino que, todas as noites, quando transmitiam na televisão "O Patinho - Todos os Patinhos", saltava para o meu colo, para juntos ouvirmos : "Todos os patinhos acabam de brincar,/ acabam de brincar,/os pijamas vão vestir e os dentes vão lavar/ os pijamas vão vestir e os dentes vão lavar,/ É que a esta hora, é a hora de ir dormir,/é a hora de ir dormir,/ mas ainda há tempo para uma história ouvir,/ mas ainda há tempo para uma história ouvir,/pais, mães ou avós à cama lhes vão dar, /à cama lhes vão dar/um beijo de boa noite e a luz apagar./ um beijo de boa noite e a luz apagar."

Depois, o papá ia à tua cama e contava-te uma história. E tu ficavas embevecido com a "A Menina do Mar" e "O Rapaz de Bronze". E eu sentia o sorriso feliz da Sophia, escutando, também ela deliciada, as histórias.

Lembro-me como também te regalavas com a "A Trança de Oiro e os Três ursinhos" que eu te contava, e que embalavam o teu sono.

Eu e o papá temos muito, muito, muito orgulho em ti. Continuas a ser o nosso menino pequenino, a par do nosso outro menino pequenino: o teu irmão. Sentimos o nosso coração aconchegado por um manto de luz divina por seres um aluno dedicado aos estudos, teres uma boa formação moral, um coração do tamanho do mundo, um sentido de humor inteligente e teres sabido encontrar o teu caminho.

Sabemos que, muito em breve, irás para a Universidade e que não mais te teremos aqui todos os dias. Vamos sentir tanto a tua falta! E o teu irmão também. (Se visses a tola da tua Mamã a chorar agora... Se soubesses como ela chora de cada vez que se lembra que isso está na iminência de acontecer...)

Ganharás as tuas asas, constituírás família. Mas tu e os teus terão sempre aqui um ninho, um porto-de-abrigo, com as estrelinhas esvoaçantes, multicolores e perfumadas, que aqui semeaste.

Do piano desprender-se-ão "Cachoeiras da Serra", mesmo na tua ausência, e serás sempre uma réstia de sol no nosso entardecer.

                                                     Texto e fotografia da Isabel Maria.



                                                     

domingo, 19 de junho de 2011

NO POENTE DO MEU OLHAR


                     Naquele entardecer, corrias à beira-mar como um cavalo à solta. Ágil, veloz, com pernas compridas, possantes, da cor do chocolate.
                    Eu, hipnotizada, a fixar os teus pés estilizados, castanhos, que rasgavam o manto branco rendilhado das ondas na areia.
                     Ao passares à minha frente, olhaste para mim e sorriste. Um sorriso de garoto, de homem, de Deus. Um sorriso imortal. Um mar de constelações no teu olhar.
                     Ah, como o teu sorriso me embriagou! 
                     No dia seguinte, à mesma hora, acorri àquela praia.
                     Não te vi...
                     Nos dias que se seguiram, voltei sempre à mesma praia, ao entardecer.
                     Nunca mais te voltei a ver...
                     Ah, homem! Foi há tantos anos! Existirias realmente, ou terás sido uma miragem divina no poente do meu olhar?


Texto e foto da Isabel Maria.

domingo, 12 de junho de 2011

DE MÃO DADA CONTIGO, MAMÃ, NA PRAIA DE RELANZAPO


Hoje, Mamã, à hora do crepúsculo, invadida pelo cansaço de mais um dia de trabalho, cheguei a casa e sentei-me no sofá da sala.

Fiquei a olhar para coisa nenhuma, até que os meus olhos se detiveram no búzio tigrado que repousa na prateleira da parede em frente do sofá.

 Olhando através do búzio, vi uma menina de 13 anos a caminhar à beira-mar, de mão dada com sua mãe, na Praia de Relanzapo, com o marulhar do Índico a embalá-las. O manto branco rendilhado das águas vinha render-se aos pés delas, trazendo-lhes conchas, búzios e estrelas do mar. A menina delirava com os búzios tigrados grandes.

Lembras-te, Mamã, como eu ficava contente quando o Índico me ofertava um búzio tigrado grande? Como eu pulava de alegria, e tu, só de veres a minha satisfação, rias "a bandeiras despregadas"?

Foi há 37 anos, Mamã. Não mais voltámos à Praia de Relanzapo e sei que nunca mais lá voltaremos juntas. (Tu dizes-me, tantas vezes, que já não tens saúde para  viagens...) Não chores, Mamã, porque, de cada vez que eu me sentar aqui no sofá, a olhar para o búzio tigrado,  tu caminharás comigo de mão dada, na Praia de Relanzapo, e o Índico ofertar-me-á grandes búzios tigrados ... E, quando um dia voltar a Moçambique, acorrerei à  Praia de Relanzapo, onde tu caminharás sempre comigo, de mão dada, à beira do nosso Índico.

                                                                


                                                         Texto e foto da Isabel Maria.

domingo, 5 de junho de 2011

CEGOS


Aqui vos deixo mais um soneto da minha Mamã:

Cegos

Nas trevas de um destino, condensadas,
Vivem os cegos às apalpadelas.
Suas mãos tacteando são estrelas
No negrume da vida encontradas.

Pupilas de esperanças apagadas,
Resignação imóvel sempre nelas,
Lembram freiras orando em suas celas,
No místico silêncio isoladas.

Mas eu que vejo, vivo descontente.
E em vosso triste fado facilmente
encontro semelhança definida.

- Cegos: sou vossa irmã e companheira.
Vosso destino eu vivo na cegueira
Dum grande Amor que encheu a minha vida.

              Maria Helena de Albuquerque de Azevedo Coutinho Rosa Furtado Cabral, in "Mulheres em Prosa e Verso" - vol. 4 - 1ª edição - Hoje Edições - Casca - RS - Brasil 2009, pag. 64.