quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A DOR DA VELHINHA

                                   


           Naquele final de tarde, a velhinha saíu à rua, vergada pelo peso dos seus 89 anos e consumida até às entranhas, pelas dores da artrite reumatóide que, não raro, a faziam almejar a morte como o melhor dos paliativos. Ademais, arrastava consigo toda a  angústia dos dramas com que a vida a vinha fustigando.

           Os cânticos de Natal ouviam-se em toda a parte. O esplendor das luzes multicolores e o brilho dos enfeites da quadra natalícia cobriam a cidade inteira com um véu de festa.   

           Todos a viver a azáfama própria do dia 24 de Dezembro nos países ocidentais de tradição cristã: correria e consumismo desenfreados nos preparativos para a consoada.

            A velhinha deteve-se a observar todo aquele bulício: casais com passo apressado, carregados de presentes de última hora, pais e avós com crianças pela mão ou em carrinhos de bebés, entrando em pastelarias e charcutarias, para comprarem sonhos, filhoses, fatias douradas, bolo-rei. O Pai-Natal à porta das lojas, acenando às criancinhas, com o propósito de seduzir as carteiras recheadas dos pais e dos avós…

            Apesar da vaga de frio polar que se fazia sentir e que a enregelava até aos ossos, a velhinha sentiu uma brisa morna a afagar-lhe a alma ao lembrar-se que também ela já vivera aquele feliz frenesim.

            Fôra há tantos anos, que a sua memória já só conseguia divisar essas imagens felizes através da densa neblina do tempo. Nessa altura tão recuada, tinha casado havia poucos anos, os seus quatro filhos ainda eram pequeninos - os dois do meio (um rapaz e uma rapariga) eram gémeos -, e viviam todos num doce lar onde reinava a saúde, o amor, a paz e a harmonia.

            Nesse tempo, ela ainda não era vítima dos maus tratos físicos e psíquicos que o marido lhe viria a infligir e que passariam a constituir uma realidade viva que ensombraria o seu matrimónio, arrastando-o anos a fio numa agonia sem fim à vista, que transformaria a alma dela num farrapo humano… Não obstante, recordava-se do marido com carinho. Um ano antes de a morte o levar, fôra-lhe diagnosticada a doença pulmonar obstrutiva crónica e, durante esse ano, fôra ela que, com a sua infinita bondade, lhe prestara todos os cuidados e que constituíra o melhor dos lenitivos para o sofrimento dele. Na véspera de partir, ele, a chorar como uma criança perdida, pedira-lhe perdão por tudo e, beijando-lhe ambas as mãos com os lábios gelados e descoloridos, dissera-lhe que ela era um anjo que tinha descido à Terra. Depois, limpando as lágrimas que molhavam os sulcos cansados da face dela, ainda acrescentara que a sua maior mágoa era já não ter tempo de lhe retribuir todo o bem que ela sempre lhe tinha feito.

              Esses Natais felizes que ela congregava agora na sua lembrança, também tinham ocorrido muito antes do desaparecimento da sua filha mais nova. Um dia, a menina de 14 anos de idade, tinha saído para ir a casa de uma amiga, à qual nunca chegaria, e não mais regressaria a casa… As buscas e demais investigações policiais nunca conduziriam a resultado algum.

              A incerteza e a dúvida geradas pelo desaparecimento da filha, constituíam a sua maior dor. Se ao menos soubesse que ela tinha falecido… Aí, sofreria como um cão, mas saberia que a sua menina estava em paz e poderia finalmente fazer o luto… Nada saber corroía-lhe o coração de mãe. A partir do desaparecimento da filha, passara a deambular no limbo. Era uma morta-viva. O seu maior pavor era morrer sem nunca ter chegado a saber o destino da filha.

                Esses Natais longínquos onde abundava a felicidade, tinham igualmente ocorrido bem antes da morte do seu filho mais velho como causa directa e necessária de uma “overdose” de cocaína, após anos de imersão no inferno das drogas.

                E também muito antes de um dos seus filhos do meio, um dos gémeos – o rapaz, ter sido preso em cumprimento de pena, na sequência de sucessivas condenações por crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, encontrando-se agora a passar o Natal na prisão. O mesmo filho que apunhalava a sua alma de mãe de cada vez que, dirigindo-se ela ao estabelecimento prisional na esperança de poder beijar e afagar o seu menino, rejeitava terminantemente as visitas dela, não comparecendo na sala.

                Os Natais felizes também tinham fluído muito antes de a sua outra filha do meio – a menina gémea, ter partido para a Austrália com aquele que ela apelidara de “a grande paixão da minha vida”. Depois disso, raramente vinha a Portugal, telefonando escassíssimas vezes, e manifestando uma perfeita indiferença pela sorte da mãe.

                Os cânticos, as luzes e os enfeites de Natal surgiam agora como um ultraje à angústia da velhinha, uma profanação da sua dor e uma afronta ao seu sofrimento.

                Sempre fôra a chama viva da casa, mas agora, sentia-se prestes a apagar-se. Intuía que não chegaria ao Ano Novo, altura em que, no dia 1 de Janeiro, perfaria 90 anos de idade.

                 Para atenuar a dor da sua alma, provocada pela violência das vergastadas dos festejos de Natal, a velhinha saíu da artéria principal por onde caminhava, e passou a circular por uma travessa, onde o som dos cânticos chegava com menor intensidade e onde não eram visíveis as luzes nem os enfeites de Natal. Tentou estugar o passo para fugir de todos aqueles festejos dos outros, mas a artrite reumatóide não o consentiu.

                Nessa travessa, ao passar junto do “Centro de Atendimento de Toxicodependentes”, que ela tão bem conhecia dos tempos que tinham antecedido a morte do filho mais velho, sentiu uma enorme dor no peito e caíu nas pedras geladas da  calçada.

               Com toda a azáfama dos preparativos de Natal e o consequente entupimento do trânsito, a ambulância só chegaria volvidos trinta minutos.

               Nessa ocasião, já só o corpo inerte da velhinha se encontrava na calçada. A alma, essa já se tinha libertado do sofrimento de toda uma vida.                    

               O relatório de autópsia, após ter descrito a lesão dilacerante da velhinha - o esfacelo da sua alma -, referia nas conclusões médico-legais: “A morte de (…) foi devida à lesão da alma atrás descrita, causada por anos de solidão, sofrimento, angústia, afrontas, amor ao próximo não correspondido e falta de amparo familiar e social.

               Tal lesão constitui causa de morte violenta e é compatível com a informação constante do Historial de Vida de (...) a que tivemos acesso, no qual é abundantemente referida toda a dor que a família e a sociedade em geral, pelas suas acções e omissões, vinham causando à falecida ao longo dos anos.”

              Poucos foram, porém, os que tiveram acesso às conclusões médico-legais vindas de referir e, precisamente aqueles que deveriam ter reflectido sobre o seu teor, jamais as leram.

              Agora, a velhinha, sentada à direita de Deus-Pai, está feliz.

               Sabe finalmente o que aconteceu à filha mais nova, com quem já se fundiu num abraço eterno: raptada em seu dia por um pedófilo, este abusara dela e depois, tirara-lhe a vida e fizera desaparecer o cadáver.

               Também já se reencontrou com o filho mais velho, que falecera vítima de uma "overdose" de cocaína.

               Terá capacidade para iluminar o caminho do filho recluso.

                O marido terá todo o tempo do mundo para lhe fazer o bem de que a considera merecedora.

               E a filha gémea veio finalmente fazer-lhe uma visita; beijou-a, abraçou-a longamente e ofereceu-lhe flores antes de o corpo da mãe descer à terra.

                                                                                                           
 

                                                        Texto e foto da Isabel Maria.