domingo, 20 de fevereiro de 2011

Castanholas para a minha avó

Junto da Catedral de Salamanca, verdadeiro ex-libris da cidade, de avassaladora grandiosidade e incomensurável riqueza arquitectónica, Isabel deteve-se a contemplar um par de castanholas com fundo azul-marinho, exposto na montra de uma loja de “recuerdos”.
Lembrou-se da avó – “a avó muito amiga e dedicada, Maria Gabriela”, como ela sempre fazia questão de terminar as cartas que escrevia à neta. Veio-lhe à memória o porte distinto e a doçura de um olhar a prodigalizar-lhe todo o amor, o festival de luz, cor e som que morava em cada Natal da sua infância, e a coutada de prendas para toda a família em que o salão do velho casarão da avó se transformava em cada consoada.
Todas os anos, na noite de 24 de Dezembro, a avó Gabriela, qual fada boa roubada aos deuses, oferecia quinze prendas a cada um dos quinze elementos da família que se juntavam no salão. E para deleite dos mais novos, todas as prendas correspondiam religiosamente às mais íntimas aspirações e secretos desejos que cada um deles acalentara durante um ano inteiro, e que a varinha mágica da avó satisfazia como ninguém.
Naquele Natal de 1967, entre as muitas prendas, a avó ofereceu a Isabel um par de castanholas que, sobre um fundo azul-marinho, tinham desenhada uma dançarina cheia de “salero”, com um conjunto de saias hiper-coloridas, empunhando umas “castañuelas” e ensaiando passos de uma fina elegância.
Nesse serão, Isabel não mais largou as castanholas, cujo som teimou em acompanhar a avó ao piano, formando um duo que encheu de luz o velho casarão. A avó sorria, como sorria sempre, ofertando a Isabel a pureza do seu sorriso, e estava tão feliz quanto ela, porque uma vez mais, a tinha feito feliz, e nisso - fazer os outros felizes, a avó era exímia.
“Como é fácil satisfazer uma criança!” - As palavras da avó naquele serão atravessaram o pó dos tempos, e revestiam-se agora de uma terna musicalidade de saudade que inundava Isabel, despertando nela o desejo de ter outra vez sete anos e ser de novo acariciada pelo brilho do sorriso da avó, que enchia o seu pequeno mundo de paz e ofuscava as luzes dos candelabros.
A partir desse Natal, Isabel tocava sempre castanholas em jantares de família, para gáudio da avó que, no final da actuação conjunta de ambas - a avó ao piano e Isabel com as castanholas, nunca se coibia de exclamar um “Bravo!”
Isabel lembrou-se que, desde a noite em que as recebera, as castanholas sempre tinham estado penduradas na porta do seu guarda-vestidos à laia de ornamento e como sinal da presença viva da avó, e daí só saíam quando Isabel as tocava em casa da avó, por entre as finas gargalhadinhas desta, ou sozinha no seu quarto.
Mas a roda da vida girou, a mesma roda que dos sete aos quarenta e dois anos de Isabel, fez desaparecer as castanholas na bruma do tempo, por entre as alegrias e as agruras da vida.
O sino da catedral de Salamanca entoou as seis horas da tarde e Isabel sentiu-se subitamente invadida por uma inexcedível vontade de tocar as castanholas com fundo azul-marinho e ofertar a actuação à sua avó.
E porque o impulso foi forte demais, entrou na loja de “recuerdos” e comprou as “castañuelas”. Não resistiu a tocá-las. Percorreu o caminho que a separava da “Plaza Mayor”, sempre a tocar castanholas. Do alto dos céus descia agora uma sinfonia para piano. Concomitantemente, o riso celestial da avó Gabriela ecoou. Ou seria o riso de Deus? Não seria a mesma coisa? Não estaria a avó sentada à direita de Deus Pai, zelando dia e noite pela existência de Isabel, tocando agora piano para abrilhantar a actuação de castanholas da neta na capital europeia da cultura?
Isabel compreendeu que a doce recordação das castanholas naquele Natal de 1967 era uma luz viva que lhe iluminava o caminho para onde quer que fosse, e que há acontecimentos da nossa infância que, de tão ternos, se instalaram um dia a ferro e fogo na nossa memória, para, a dada altura, deixarem de ser apenas uma lembrança e passarem a ser um rasto cintilante de tempos idos que, inelutavelmente, nos acompanha até ao fim dos nossos dias.
Serena e confiante de que a actuação de castanholas estava a ser um êxito para sua avó, Isabel olhou para o céu de Salamanca, vislumbrou o rosto harmonioso da avó Gabriela, retribuiu-lhe o sorriso de encantamento e, levantando as castanholas para o céu, segredou-lhe: “Avó! Estas são para ti!”

Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa.

14 comentários:

  1. Apreciei o post, até porque tive uma avó que tocava castanholas. Trouxe-me boas recordações.
    Por outro lado, gosto de ouvir a Carmen de Bizet com acompanhamento de castanholas.

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  2. Belíssimo post, tocante e encantador!
    Já tweetei sobre o seu blogue. Maravilhoso, encontrar alguém com tanta sensibilidade!
    Vou seguir o seu blogue, talvez possa fazer o mesmo no meu! Um abraço,

    Maria Carmo

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  3. Olá, Isabel

    Na verdade, as recordações da infância são as que mais nos acompanham pela vida fora.E a forma como descreve esta ligação com a sua avó faz-nos ler o texto do princípio ao fim num fôlego.Gosto da sua escrita.
    Um beijo
    Olinda

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  4. Delicioso este post...escrito com o coração poisado na lembrança de uma avó que entendia os desejos dos netos...Gosto do teu escrever porque me leva para outros mundos onde abundaram as alegrias...embora a nós, nos pareçam sempre breves.
    E a música...ilumina e marca o compasso das palavras...
    Beijo
    Graça

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  5. Olá, Álvaro!
    As recordações do passado dão cor ao nosso presente. É tão bom recordar!
    Adoro a "Carmen" de Bizet, mas nunca ouvi com castanholas.
    Cada vez que vou a Espanha, compro um "abanico" e umas "castañuelas".
    Um abraço.

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  6. Olá, Olinda!
    Obrigada, Querida.
    Volte sempre.
    Estou atenta ao seu blog.
    Um beijo.

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  7. Olá, Carmo!
    Obrigada por me afagar a alma, desta vez, em Português.
    Um abraço grande.

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  8. Olá, Graça!
    Obrigada, Querida!
    Que as estrelas do firmamento africano iluminem sempre o teu caminho.
    Um beijo.

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  9. As minhas recordações de infãncia são um grande alimento para a minha felicidade, recordei neste texto a minha avó paterna espanhola de Oviedo , que também ela tocava castanholas, perdia muito cedo mas nunca esqueci o fascinio que sentia pelas suas castanholas...
    Beijinhos

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  10. Querida Lilá(s):
    As boas recordações da nossa infância são o alicerce do nosso presente e projectam o nosso futuro.
    E as pessoas que, na nossa infância, iluminaram o nosso caminho, são estrelas que, todas as noites, se acendem por nós e para nós.
    Um beijo.

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  11. "há acontecimentos da nossa infância que, de tão ternos, se instalaram um dia a ferro e fogo na nossa memória, para, a dada altura, deixarem de ser apenas uma lembrança e passarem a ser um rasto cintilante de tempos idos"
    Que bem me soube ler isto!

    Obrigada.

    Bjins

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  12. Obrigada, Fa menor. Há efectivamente recordações que adquirem um estatuto diferente. Pela sua importância, deixam de ser apenas recordações, para ascenderem a uma outra categoria.
    Um beijo.

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  13. ... as minhas recordações da avó (a única que conheci) estão ligadas à Páscoa!

    E depois, com mais frequência e mais alegria, às férias de verão! Aquele mês divinal - Setembro - mês das colheitas, das desfolhadas, dos cantares na quinta, das tardes quentes, dos refúgios para leitura sob as frescas sombras das árvores, das noites de conversas amenas no exterior da casa enorme, irmãos, primos, avó)!
    E da romaria que levava todas as famílias das casas das terras de Basto a encontrarem-se (avós e netos) nos festejos! Que felizes éramos! Pueris, divertidos, soltos! E a doçura da avó sempre por perto!

    Quanta saudade me fez ler o seu texto tão sensível, Isabel! Encantador!

    De volta, mas em atraso, eu sei, para a ler com imenso prazer!

    Sensibilizada pelo olhar afectuoso a 'fragmentos'

    Um beijo,

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  14. Fragmentos Culturais:

    Quanta saudade da nossa infância, da nossa adolescência, da nossa juventude, onde havia uma Avó! Recordo com um sorriso triste de saudade, as férias de verão em casa da Avó Gabriela, em Portalegre.

    Um beijo.

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