





Don Giovanni
Pelas 18h 50m do dia 8 de Agosto de 2007, Renata chegou com a irmã a Staré Mesto, Ovocný trh 1, ao “Stavovské Divadlo” (“Teatro dos Estados”), o mais antigo Teatro de Praga, célebre por ser o lugar onde, em 29 de Outubro de 1787, Wolfgang Amadeus Mozart dirigiu a estreia de “Don Giovanni”, precisamente a ópera a cuja representação elas iam agora assistir.
Ao entrar na sala de espectáculos do “Teatro dos Estados”, a atenção de Renata foi convocada para a talha dourada, magnificamente esculpida, que revestia e adornava as galerias e os camarotes distribuídos por vários andares. Deliciou-se a observar a opulência dos candelabros e a extraordinária riqueza das pinturas clássicas do tecto. Quanto fausto! Quanta magnificência! Sentiu-se, ela própria, uma princesa, por lhe ser dado o privilégio de, naquele Teatro, assistir à representação da “ópera das óperas”.
Quando a orquestra sinfónica, posicionada entre a plateia e o palco, iniciou a apresentação de “Don Giovanni”, a sala foi invadida por uma onda gigante de encantamento.
Depois, a cortina subiu, e Don Giovanni, mascarado, saiu escorraçado da casa de Dona Ana, que ele acabara de tentar seduzir. Perseguido pelo Comendador, pai daquela, travou-se um duelo entre ambos, acabando o Comendador por ser morto às mãos de Don Giovanni. Assim se iniciou este drama cómico em dois actos e cinco cenas.
Em toda a sua actuação, Don Giovanni encheu o palco. Era um homem alto, elegante, a quem as vestimentas de fidalgo de Sevilha do sec. XVII assentavam que nem uma luva. Os olhos eram surpreendentemente expressivos, e o cabelo, preto e brilhante, esticado para trás e apanhado num rabo-de-cavalo, dava um refinado encanto à figura do depravado sedutor.
A voz era grave e possante, com um timbre aveludado, e as suas estrondosas gargalhadas de escárnio enchiam o ar de hipnotizante dramatismo.
Com a actuação do barítono, a sala do teatro transformou-se num carrossel mágico, capaz de transportar as mulheres a galáxias nunca antes exploradas.
Assim era Don Giovanni!
No final da actuação, quando o intérprete voltou ao palco, o Teatro veio abaixo com os aplausos.
Deslumbrada com o seu talento, Renata pediu a funcionários do Teatro para a levarem ao camarim dele, pois pretendia felicitá-lo pela actuação. A irmã opôs-se à ideia desde a primeira hora, dizendo que se tratava de uma atitude inusitada e que o cantor não estava ali para ser incomodado pelo público. Indiferente à opinião da irmã, Renata, deixando-a à sua espera na parte superior do Teatro, foi conduzida ao andar de baixo, onde o sedutor, ainda com os trajes da representação, a acolheu com todo o afecto, mostrando-se lisonjeado com a presença e o interesse dela.
De repente, os lábios de ambos, ávidos e sedentos um do outro, beberam-se mútua e reciprocamente. Depois, ele pegou na mão dela, conduziu-a apressadamente para fora do camarim e, correndo por corredores labirínticos e escuros, cobertos pela neblina do final da actuação – a neblina do momento em que Don Giovanni foi condenado aos infernos, chegaram à saída das traseiras do Teatro. Aí, ambos entraram numa limousine, cujo chauffeur, ao volante, esperava o barítono.
A limousine percorreu as ruas de Praga, passando pela Igreja de Nossa Senhora de Týn, Praça da Cidade Velha, antiga Câmara Municipal com a sua Torre, a Capela de Sacada e o Relógio Astronómico. Depois passou pela Igreja de São Nicolau, atravessou o Rio Moldava numa ponte paralela à pedonal Ponte Carlos – Ponte Mánesùv, passou junto ao Museu Franz Kafka e à Catedral de São Nicolau. De seguida, subiu uma longa rua – Snemovni, até ao castelo de Praga, junto do qual se situava a mansão do barítono.
Entraram e os seus corpos ao rubro deram de beber ao desejo ardente que, naquela noite, os tinha feito sentir uma fatal atracção um pelo outro. O corpo dele, suave e perfumado, desflorou a paixão dela. Amaram-se sem cerimónias, sem limites e sem tréguas, como só se ama uma vez na vida, e para ambos, essa vez foi nessa noite sem fim. Don Giovanni era um sedutor nato e um amante perfeito.
Quando Renata acordou no bairro praguense de Panská, no “Palace Hotel”, já a irmã se encontrava a tomar duche. Recomendou-lhe que se levantasse, ou ainda perderiam o avião de regresso a casa.
Renata recordou-se que, na noite anterior, tinha ido com a irmã ao “Teatro dos Estados” e tinha achado sublime a actuação do barítono que dava voz e corpo a Don Giovanni. No final do espectáculo, quando falara à irmã em irem ao camarim de Don Giovanni felicitá-lo, ela retorquira categoricamente que essa atitude era inusitada e que o artista precisava era de sossego – “Já viste se toda a gente se lembrasse agora de lá ir?” Na sequência da resposta da irmã, ambas tinham abandonado o Teatro para jantar num requintado restaurante de Praga, após o que tinham regressado ao hotel.
O que a irmã nunca viria a saber é que, naquela última noite em Praga, Renata não só tinha ido felicitar Don Giovanni, como também tinha subido com ele ao Olimpo, passando juntos uma noite de deuses.
Isabel Cabral Costa