domingo, 8 de janeiro de 2012

A CHUVA DANÇOU COM ELA


                   Chovia ferozmente em Nampula, como sempre acontece na estação das chuvas.

                   Chuva que começa por nos afagar de mansinho a face, para, logo de seguida, nos sacudir o espírito e nos lavar a alma, numa inebriante sensação de paz que se desprende da lassidão quente da terra fecundada pela raiva das águas.

                   Inês tinha gravada na memória, a visão da sua pele de chocolate doce, acariciada pela chuva, à qual ela sempre se expunha irresistivelmente, qual rosa de ébano desabrochando às mãos de uma divindade. Quando chovia, até o sangue negro que lhe corria nas veias, clareava, o corpinho de menina tornava-se ainda mais ágil, e do sorriso que sempre lhe era fácil, irradiava agora uma luz tão suavemente intensa, que inundava África inteira de uma paz sem par.

                    Depois de cada dilúvio com que o jardim que a vira nascer era presenteado, Inês corria cheia de vigor, em acção de graças, para debaixo do velho embondeiro, tão imenso como a sombra que dava quando o sol flamejava, e em cujo tronco ancestral, havia um buraco em forma de gruta, onde ela acreditava que vivia um deus negro que a protegia e lhe dava a bênção das chuvas.

                     A menina corria e saltitava impulsionada pelo frenesim da chuva e tudo era festivo na sua vida. Em África a vida é uma festa! Para mais, quando se é criança e o sol celestial nos aquece o espírito e a chuva divina nos dá alento, enquanto nos soltamos em machambas verdes a perder de vista, onde nem o céu é o limite.

                    Mas a festa da vida terminou num dia de chuva em 1973, quando Inês foi obrigada a abandonar a sua terra natal, mercê da guerra colonial que avassalava Moçambique. Nessa manhã cinzenta, Inês foi impiedosamente expulsa da sua África - Mãe, como um feto supliciado, arrancado a esfacelamento das entranhas do ventre materno.

                     Para trás, ficavam os fins-de-semana na praia de Fernão Veloso, os Natais na Ilha de Moçambique, o mês de Janeiro das férias grandes na Ilha de Inhaca, como para trás ficava o voo dos flamingos que, bailando em seu redor, à beira-mar, vinham render-se a seus pés, numa homenagem àquela cujas gargalhadinhas angelicais ainda hoje ecoam naquelas paragens do Índico.

                    Para trás, ficava Lichinga, onde Inês visitava a Avó Paula que sempre lhe contava intermináveis histórias enquanto a abrigava e afagava no seu colo, apaziguando, assim, a dor da menina que nunca conhecera sua mãe, porque esta, para a ver nascer, tivera de partir.

                   Também em Lichinga ficava para sempre o cortejo de mainatos de sua avó, os quais tinham baptizado Inês com o nome de “Princesa do Niassa”.

                   Não mais voltaria a Mocimboa da Praia, onde seu pai gostava de visitar o governador de Nampula no seu retiro de fins-de-semana, e onde os habitantes locais comentavam que Inês era a “menininha” mais bonita do Rovuma ao Maputo.

                   Para trás, ficavam aquelas pérolas cinzentas escuras que, estonteadas, dançavam nos olhos do mainato mais novo de sua casa, de cada vez que olhava para Inês. 

                   No final da vida, Inês sofria desesperadamente a ausência das quedas de água que generosamente ganhavam corpo no jardim da sua infância todas as vezes que chovia.

                   Já na fase terminal do cancro que a condenou, Inês quis voltar ao Olimpo de Nampula, às suas chuvas e ao velho embondeiro, de que se havia despedido trinta anos atrás. Acreditava que o mal que lhe minava o corpo, seria eliminado pela força redentora das chuvas de Nampula que caíam sempre com vigor virginal.       

                    Quando chegou, em plena estação das chuvas, não caía nem uma gota de água. Mesmo assim, não perdeu a esperança - não era aquela a terra das chuvas? - e regressou ao seu embondeiro de sempre, agora em passo suave, porque o seu vigor físico já não conseguia acompanhar o frémito da sua alma.

                    Inês sentou-se debaixo da velha árvore, abraçada pelo deus negro da gruta. De repente, começou a chover ferozmente. Em breve, a chuva deu lugar a uma tempestade tropical. Inês levantou-se e, com uma expressão de enleio supremo, começou a dançar à volta do embondeiro, com os olhos apontados para o céu, para receber directamente na sua face de ébano, a fertilidade da chuva de África. A trovoada emudeceu em homenagem à filha da terra e a chuva fez-se serena só para ela. Numa simbiose perfeita entre a vida humana e a natureza, a chuva entendeu que deveria acompanhar o ritmo de alguém que já só conseguia deslizar. Ternurenta, a chuva dançou com ela tomando-a pela cintura, e acariciou-lhe uma última vez a face de ébano, perfumando-lhe a alma.

                     Terminada a dança, Inês, saciada, foi de novo sentar-se debaixo do embondeiro, onde a esperava o seu deus africano que, beijando-lhe suavemente a testa, lhe ofertou um sorriso sem mácula, do qual se desprendeu um subtil eflúvio de terra purificada. Inês sorriu, e sentada, partiu feliz.

                       Reza a lenda que, de cada vez que chove copiosamente em Nampula, emerge da terra molhada, sob o velho embondeiro, uma gentil figura de senhora que, com o rosto de ébano completamente iluminado, sorri invadida por uma paz que não é deste mundo, e que, de seguida, se levanta e dança com a chuva, amainando-a, até que se senta debaixo da árvore e, sempre sorrindo, regressa à terra molhada de onde desabrochou.

                                                                    Texto e fotografia da Isabel Maria. Republicação do texto com que, em Dezembro de 2010, foi inaugurado este blog.
                                            

                               

21 comentários:

  1. Querida Isabel
    Arrepiei-me a ler o teu conto.
    Recordação da chuva torrencial a que tantas vezes assisti em Nampula? Talvez, mas não só...
    Aconteceu mais do que uma vez ir a conduzir o meu carro e ter que parar )como todos os outros...) pois não se via a estrada.
    Muito triste, ainda que com muitos momentos felizes, a história da Inês.

    Eu continuo com a minha escrita, que se tem revelado não muito fácil. Ordenar recordações de sete anos de África às vezes é complicado.
    Muitas vezes escrevo um episódio que me vem à ideia, e depois tenho que intercalá-lo noutros que já escrevi... Enfim, hei-de conseguir!
    E, como niinguém corre atrás de mim, não tenho data marcada :)levarei a tarefa a bom termo.(espero...)

    Desejo-te a continuação de um bom 2012, com tudo o que te faça feliz.
    Um abraço do tamanho do mundo e beijinhos

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  2. Isabel ,

    lindo , lindo , lindo !

    Um beijo ,
    Maria

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  3. Mas que lindo, Isabel! É uma história igual a tantas outras que todos nós vivenciamos nesses anos difíceis de descolonização; vidas que se desfizeram com muita dor e que se voltaram a fazer noutras paragens com muito sofrimento não só por questões financeiras, mas principalmente pelo preconceito a que muitos foram sujeitos. É sempre triste ter de deixar os lugares onde fomos felizes, mas neste caso não foi só tristeza, mas sim um sofrimento terrível. A Inês teve ainda a possibilidade de lá voltar e de lá partir para sempre. De certeza que partiu feliz. Parabéns, Isabel e obrigada pela partilha de um texto tão belo. Um beijinho e fica bem, amiga!
    Emília

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  4. Nossa,Isabel...
    Que lindo, intenso, triste, impactante!!!!
    Belíssimo texto!
    *Que bom que ela pode, regressar ao seu canto, e partir dali feliz e em paz!

    Beijos!

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  5. Como nos tem habituado, mais um excelente texto de uma época marcante na nossa vida!
    Um excelente ano de 2012.
    Um abraço

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  6. Querida Isabel

    Lendo, me encantando e relembrando a minha infância, sob a chuva cearense, cujo período vai de março a junho...é o chamado "inverno". Hoje, já não é assim, a seca impera, quase todos os anos.
    Que imagem linda a da Inês, em sua infância, ao tomar banho de chuva na inesquecível Nampula. Uma história triste, ao final, mas cheia de vida. Encantadora e comovente, a um só tempo.

    Obrigada, amiga, pela beleza do li...

    Afetuoso beijo, apertado abraço,
    da Lúcia

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  7. Querida Isabel

    Já aqui estive, ontem, a ler este seu conto, escrito com perícia e sentimento e que nos conduz a um dos lugares mais lindos e mágicos: África. Levei-o em mim e deixei-me impregnar do seu perfume, meti-me na pele da personagem e dancei com ela, sob a chuva, banhando-me no revigoramento que as chuvas de África transmitem. Assim, voltei e aqui estou a escrever estas palavras, para dizer que, embora seja triste o fim terreno da Inês, a elevação da sua alma em comunhão com a terra que a viu nascer e a união com o seu deus africano deixa em nós a certeza de que estará num lugar lindo onde se sentirá muito feliz.

    Adorei o seu comentário lá no Xaile e agradeço-lho.:)

    Beijinhos meus e da minha filhota.

    Olinda

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  8. Que história linda!Deliciosa de se ler... e perceber que aqui no Brasil temos muito dessas chuvas que lavam a alma, coisa que muito aprecio, mas se abusar, nos levam junto também.

    É sempre muito bom vir aqui.

    Beijinhos e um excelente 2012.

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  9. Somos presenteados com mais um excelente texto! curioso como África marca e tem histórias sem fim.
    Beijinhos Isabel

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  10. Quem dera que os nossos últimos momentos fossem assim beijados!

    Bjos

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  11. Minha amiga uma história linda e comovente, numa narrativa brilhante. Bom domingo e uma excelente semana.
    Beijinhos
    Maria

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    1. Adorei esta história cheia de encanto e tão bem contada-Já tentei comentar uma série de vezes e o comentário,desaparece.Veremos se,desta vez, fica.
      Mil beijos
      Graça

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  12. Olá, Isabel

    Há encontro marcado, amanhã, no Xaile de Seda. Apareça, se puder, sim?

    Beijo e bom fim de semana.

    Olinda

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  13. Bonito e aconchegante blog. Parabéns. Grande abraço.

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  14. Olá, Isabel

    Venho trazer beijinhos e votos de bom fim de semana.

    :)

    Olinda

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  15. Querida Isabelinha (posso chamar-te assim? é como trato a minha filha Isabel...)
    Está tudo bem contigo? Espero que sim...
    Como não há post novo, deixo um abraço com votos de bom fim de semana.
    Beijinhos

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  16. Querida Isabel

    Saiba que a saudade, de você, está aumentando...

    Vim deixar meu apertado abraço, bem saudoso, claro!

    Lúcia

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  17. Amiga Isabel hoje venho especialmente para agradecer o seu carinho ao ter comemorado comigo o aniversário da minha mãezinha, deixando a sua preciosa mensagem. “A glória da amizade não é a mão estendida, nem o sorriso carinhoso, nem mesmo a delícia da companhia. É a inspiração espiritual que vem quando você descobre que alguém acredita e confia em você.” (Ralph Waldo Emerson)
    A partida do meu paizinho deixou um vazio imenso no meu coração...
    Beijinhos
    Maria

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  18. Olá,Isabel!!

    Reli sua história linda e senti o mesmo!
    Ela é forte, surprendende ,impactante!!!
    Beijos!

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  19. Oi Isabel!
    Mais uma história da vida real!
    A vida em Africa , os cheiros da terra ,as suas chuvas tropicais e a saudade.
    A vontade do regresso e finalmente a paz ansiada!
    Comovente ,mas gostei.assim como todas as outras que tem escrito,lêem-se com tranquilidade.
    Até breve
    Herminia

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  20. Isabel querida,

    E ate parece que dancei,acompanhando a doce Inês e sentindo a emoção que a dominava.Como escreves lindo,amiga!!!Ler-te me faz atravessar o oceano e ir atë a Africa,vivendo contigo a beleza e ternura de tua narrativa.
    Bjssssss,
    Leninha

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