sábado, 5 de fevereiro de 2011


"Nunca conheci nenhuma outra pessoa que fosse capaz de responder tão plenamente a tudo o que o mundo e a vida lhe ofereciam: à música, a um passeio na floresta matinal, à cor e ao perfume de uma flor, à palavra sábia e justa de uma pessoa. (...) Não conheci ninguém que fosse capaz de se alegrar com as coisas mais pequenas da vida, como ela: pessoas e animais, estrelas e livros, interessava-lhe tudo, (...) mas aproximava-se de tudo o que a vida lhe dava e mostrava, com a alegria incondicional de uma criatura que veio ao mundo para desfrutá-lo." - Sándor Márai, "As velas ardem até ao fim".


"Avé Bárbara!"

Àquela hora do crepúsculo, o mar espreguiçava-se na areia, estendendo um manto de renda branca aos pés de Bárbara. As gaivotas piavam, abrilhantando a sinfonia das ondas. Mais além, uma caravela quebrava as águas. Roçando a linha do horizonte, o sol formava uma bola cor-de-laranja que dir-se-ia estar a ser paulatinamente tragada pelo oceano, no qual se ia afundando.
Bárbara mergulhou o corpo no mar da Figueira da Foz e sorriu afagada por uma sensação de paz plena.
Os seus três filhos saltitavam à beira mar, apanhavam búzios e jogavam à apanhada. Eram carne da sua carne e uma dádiva dos céus. Tinham 9, 7 e 5 anos de idade. Todos rapazes na idade da inocência. A sua algazarra era um hino à vida.
Perto deles, numa espreguiçadeira, o marido de Bárbara lia o jornal.
Bárbara seguiu o trilho da caravela nas águas, perscrutou o marido e os filhos e sentiu o perfume de um completo bem-estar penetrar em si.
Que mais podia pedir à vida? O marido e os filhos eram pessoas maravilhosas e gozavam de boa saúde. Bárbara era uma mulher bem sucedida familiar, profissional e socialmente e tinha grandes amigos. Além disso, sabia que dentro de três meses, iria finalmente voltar a Moçambique, o país do qual se despedira 30 anos antes, e que a acarinhara até aos 15 anos de idade. Sempre sentira muitas saudades de África e, agora, estava prestes a concretizar o sonho de regressar a paragens onde o tempo corre com um ritmo sereno e a paz de espírito é uma realidade viva provinda de uma fonte inesgotável.
Mas este momento de felicidade revelou-se perecível, pois de súbito, Bárbara foi avassalada por um sentimento de angústia.
Fôra há quatro anos que, peremptoriamente, sem apelo nem agravo, tinha sido lançado contra si, o diagnóstico de cancro colo-rectal – adenocarcinoma do cólon. Seguira-se a intervenção cirúrgica para remoção do segmento do intestino afectado, a única forma de aniquilar a hidra até às entranhas, e de seguida, durante um ano, tinha sido submetida a duas terapias adjuvantes: radioterapia e quimioterapia.
Aprendeu que, a partir de então, tinha de estar sempre vigilante, porque a besta nunca dorme, e que essa vigilância, para ser eficaz, deve ser exercida de forma serena, mas vigorosa, sempre embalada pela esperança que, à sua passagem, vai repelindo aqueles medos infundados que tantas vezes assaltam e consomem quem se encontra no chamado "processo de remição" do cancro. Por isso, as regulares consultas de vigilância e os exames médicos periódicos na Delegação de Coimbra do Instituto Português de Oncologia passaram a fazer parte integrante da sua vida.
O seu pavor tinha um nome: "micro-metástases": aquelas metástases que, não sendo inicialmente detectáveis nos exames imagiológicos, só se tornam visíveis mais tarde, quando já nada pode ser feito para salvar a vida.
Por instantes, temeu já não ter tempo de fazer a sua tão sonhada viagem a Moçambique. Mergulhada nas águas, de frente para a linha do horizonte, rompeu num pranto.
O marido, o obreiro do seu renascimento, o homem que, recuperando um a um os destroços em que a doença a transformara, e que, reunindo-os e encaixando-os de novo, fizera Bárbara renascer em cada aurora, sentiu, subitamente, também ele, uma grande tristeza tomar conta de si. Levantou os olhos do jornal, observou Bárbara e intuiu que ela precisava desesperadamente dele naquele momento. Deu um salto da espreguiçadeira e, aproximando-se dela por trás, enleou-lhe a cintura. Depois, limpou-lhe as lágrimas salgadas com as suas mãos quentes, de um calor que vem da alma, deu-lhe um vigoroso beijo nos lábios molhados e trémulos, mergulhou os seus olhos nos dela, e sorriu. E aquilo que ele lhe disse sem palavras, devolveu-lhe a tranquilidade, a força e a segurança de que ela necessitava avidamente naquele momento.
Bárbara recordava-se que, depois da intervenção cirúrgica, tinha recomeçado, aos poucos, pela mão do marido, a ter esperança no futuro e a desfrutar das pequenas grandes coisas da vida, como o pôr-do-sol à beira-mar.
Faltava-lhe, todavia, voltar a Moçambique - o velho sonho que iria agora concretizar.

Passaram três meses. Os filhos saltitam, apanham búzios e jogam à apanhada à beira-mar. Junto deles, o marido de Bárbara lê o jornal na espreguiçadeira. Estão na Ilha de Inhaca, em Moçambique.
Bárbara está entre eles e com eles, mas não foi com eles. O rosto bem delineado dela surge recortando a linha do horizonte. Sorri invadida por uma paz que já não pertence a este mundo. Fica feliz por verificar que o caudal das águas vai progressivamente retomando o seu curso.
Subitamente, o filho mais pequeno corre para o colo do pai e chora abraçado a ele, dizendo-lhe que quer a mãe. O pai, com os olhos marejados de lágrimas, explica-lhe que a mãe repousa agora no céu, ao pé do Menino Jesus, e que, dia e noite, olha por ele, pelos manos e pelo papá.
Por detrás da linha do horizonte, lá onde o mar toca o céu, Bárbara continua a sorrir invadida por uma paz celestial.
O filho mais velho diz ao pai: “A mamã costumava apanhar búzios na praia connosco. Ficava muito feliz por encontrar búzios bonitos, e a partir de cada búzio, contava-nos uma história. A mamã vibrava com tudo. Nunca houve ninguém como a Mamã.”
O marido de Bárbara engole várias vezes seguidas numa tentativa, tão desesperada quanto vã, de evitar que o menino que é carne da sua carne e que é carne da carne dela, o veja chorar. Ouvir o menino dizer aquilo, dilacera-o até ao canto mais recôndito do seu ser.
“O sonho da mamã era voltar a Moçambique”, prosseguiu o menino mais velho. “Mas já não teve tempo. Deus chamou-a e ela teve de ir. Nós viemos, mas a mamã nunca mais voltou a Moçambique.”
“Enganas-te!”, retorquiu o pai. “A mamã voltou a Moçambique, sim! Ela está aqui connosco, e estará sempre onde quer que nos encontremos. Se se concentrarem e sorrirem como ela sempre sorria, verificarão que a mamã está aqui a apanhar búzios, e, se escutarem com atenção, ouvi-la-ão pedir-me que lhes conte a história de uma menina que saíu de Moçambique há 30 anos, e que sempre quis voltar. Querem ouvir?”
Numa chilreada, as três crianças saltaram para o colo do pai e disseram em uníssono: “Sim! Conta, papá, conta!”
Bárbara volta a sorrir. Ouve, também ela deliciada, a história. Está com eles agora em Moçambique, como estará com eles para todo o sempre. Olhando para o marido e os filhos, formula um desejo, que lutará com todas as suas forças para que se concretize: que todas as estrelinhas que há no céu, brilhem sempre por eles e para eles, e que a luz divina ilumine sempre o caminho à passagem deles.

Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa

6 comentários:

  1. "As velas ardem até ao fim"...é um livro maravilhoso que, de vez em quando , o releio e o ofereço a um ou outro amigo, na certeza de oferecer um bom livro.
    Os sonhos, também ardem até ao fim e...concretizam-se ,embora ás vezes sejam por caminhos diferentes dos imaginados! Gostei da história e entendi a ansiedade da Bábara em voltar a Moçambique!
    Hoje, sem as pessoas que lá amei e trinta e quatro anos depois...não sei se, como a Bábara,
    eu gostaria de voltar à terra onde nasci e fui tão feliz!
    Beijo.
    Graça

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  2. Gostei imenso de ler, terminei um pouco arrepiada, o meu cunhado está neste momento com esse problema, começou a quimioterapia para ser operado em breve...
    Já tinha lido várias referencias ao livro, acho que o vou adquirir.
    Beijinhos

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  3. Querida Lilá(s):
    Peço a Deus que ajude o seu cunhado. Temos de ter força e acreditar! Sá assim podemos dar força a quem dela necessita. E nas doenças oncológicas, a força psicológica é tão importante! Um carinho, um mimo, aquela palavra de confiança e de alento dita na hora certa... É música para o coração e aconchego com um manto de veludo para a alma. A boa notícia é que, actualmente, as doenças do fôro oncológico já não são aquela hidra que foram noutros tempos. Nas palavras de Luis Costa, doutorado em Oncologia, e que exerce na Unidade de Oncologia do Hospital de Santa Maria, membro da "American Society of Clinical Oncology" e da "European Society of Medical Oncology", "O cancro também pode morrer". Esta verdade deu o título a um livro do Doutor Luis Costa, que, sabiamente, nos elucida sobre essa doença crónica, que é o cancro, num livro que me deu muita força.
    Um abraço grande.

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  4. Obrigada amiga
    Vou passar a mensagem á minha irmã, curiosamente tenho um familiar que é médico em Santa Maria vou falar com ele sobre este Luis Costa. Este meu cunhado pertence á minha familia desde os meus 10 anos de idade, é portanto mais que um simples cunhado, é um homem lutador e tem todo o carinho e apoio dos familiares, estas correntes positivas ajudam imenso eu sei. Obrigada pelo carinho da sua resposta.
    Um beijo grande

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  5. Olá, Isabel

    Este caso que no seu âmago é muito triste acaba por ser uma palavra de esperança para aqueles que vivem momentos tão aflitivos como estes. Na sua forma de escrever fluida, simples e emotiva consegue envolver-nos de tal modo que nos consideramos parte daquilo que descreve.Daqui deste lado direi também: Avé Bárbara.
    Continuarei a visitá-la.
    Muito obrigada.
    Um grande abraço
    Olinda

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  6. Olá, Olinda!
    Muito obrigada pelas suas palavras que tomo como um estímulo para escrever mais e melhor.
    Também continuarei a visitá-la.
    Um abraço grande.

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