sábado, 12 de fevereiro de 2011


“Um filho sem pais é órfão. Mas como se chamam pai e mãe de uma filha falecida?” – P.F.Thomése, “A filha-sombra”, pag 17.


Reencontro

Naquele entardecer de Agosto, Helena entrou no barco para um cruzeiro no Thames, entre Waterloo Pier e Greenwich.
Decidira viajar de Lisboa até Londres para, uma vez mais, sobre as águas do Thames, ter a doce ilusão de estar a navegar de mão dada com sua filha e a afagar a cabecinha dela, aconchegando-a no seu peito de mãe.
Sua filha vibrava com os cruzeiros no Thames, com aquela vibração própria dos seis anos de idade, em que o corpo, a alma e os sentidos em uníssono se fundem numa vibração festiva, cheia de luz, cor e música.
Helena reviveu o último cruzeiro que, ao entardecer, ambas tinham feito naquelas águas, de mãos entrelaçadas, levando sua filha a cabecinha encostada no seu peito. De quando em vez, a pequenina apenas lhe largava a mão para lhe afagar a face, com o que, acima de tudo, afagava a sua alma de mãe. Este ser humano tão pequenino, era um permanente afago para Helena.
Um caudal de memórias fez desfilar à frente desta mãe, um a um, num cortejo de divina alucinação, todos os passeios que tinha feito com sua filha na capital britânica.
Sorriu com inigualável doçura ao recordar o número infindável de vezes que se tinham deslocado a Craven Hill, para visitarem o “London Toy and Model Museum”, à Marylebone Road, para visitarem o “Madame Tussaud´s” ou o “London Planetarium”, e ao Regent´s Park, para visitarem o “Zoo”.
Depois, Helena mergulhou numa nuvem de estrelinhas ao recordar as inúmeras vezes que tinha fotografado sua filha em Trafalgar Square, a dar milho aos pombos, sob o olhar atento do vencedor da batalha naval de Trafalgar – Almirante Lord Nelson, que, no alto da “Nelson´s Column”, com uma altura de 44 metros, e cercado por quatro majestáticos leões de bronze, surge como o guardião de Londres e o garante da segurança das suas gentes.
À frente de Helena, desfilaram de seguida, os almoços que tinham feito juntas no restaurante da “National Gallery”, numa mesa posicionada ao pé do mural da Paula Rego, com vista para Trafalgar Square.
Vieram-lhe ainda à memória as fotografias que tirara a sua filha junto do querubim de madeira dourada – o “Fat Boy of Pie Corner”, no cruzamento da Giltspur Street com a Cock Lane, os passeios feitos nas barquinhas da roda gigante instalada nos “Jubilee Gardens”, à beira do Thames – “British Airways London Eye”, com Londres subserviente a seus pés, os jogos e bonecos comprados em Regent Street, no “Hamleys”, os livros infantis adquiridos em Charing Cross Road, na “Waterstones” - a maior livraria da Europa, onde ela e a filha passavam tardes, esquecidas, percorrendo os sete andares, divertindo-se no espaço para “Internet” e deliciando-se nos restaurantes e cafés.
Helena viajava frequentemente para Londres, porque o desafogo económico assim lhe o permitia, e o gosto e o interesse por tudo o que tivesse um cariz anglo-saxónico, a tal a impeliam. Levava sempre consigo a filha que, desde cedo, aprendeu a amar Londres como a sua segunda cidade.
A dor dilacerante que passou a habitar Helena desde havia oito meses, viajava sempre consigo, enegrecendo o sol dos seus dias e fazendo das suas noites poços de negrume sem fundo. A angústia da perda enlutava a sua alma de mãe, crucificando-a até às entranhas e envolvendo-a numa mortalha da qual não mais se conseguiria libertar até ao fim dos seus dias. Uma mulher mortificada dentro de uma mortalha. Não é assim que se sente uma mãe que perde uma filha? Não tem essa mulher a alma num rebentamento permanente, com aquela que é a maior dor do mundo? Não é ela que vive num holocausto sem fim à vista? Não é ela o ser cujo pranto nunca pode esperar? Não é ela a pessoa que foi esfacelada, supliciada e, finalmente, também ela sepultada? Tal era Helena!
Olhou para um grupo de japoneses que, à sua frente, com indisfarçável avidez, ia imortalizando todos os monumentos da capital britânica com máquinas fotográficas e câmaras de filmar de alta tecnologia.
Depois, deteve-se a contemplar cinco robustos e vermelhuscos alemães que riam e cantavam com voz entaramelada, a denunciar excesso de consumo de álcool.
Interrogou-se como era possível o mundo não ter acabado se sua filha tinha morrido. Como continuava a girar a roda da vida, se sua filha já cá não estava com a vitalidade dela para a impulsionar? Como continuavam a existir os cruzeiros no Thames, depois dela e sem ela? Se a doença a fulminara, como tinha ficado de pé a cidade de Londres que era dela?
A alegria que continuava a existir nas pessoas, consubstanciava para Helena, para além de uma afronta à sua sobrevivência – que mais era ela do que um ser sobrevivente ? -, uma profanação da memória da sua menininha.
Lembrou-se do cortejo de horrores arrastados pela leucemia de sua filha, do internamento no Hospital de Hemmelsmith, em Londres, catorze meses antes, do estado de prostração em que as sessões de quimioterapia a deixavam, qual passarinho assustado em busca do seu ninho, do sorriso angelical que o rosto já moribundo dela lhe ofertara escassas horas antes de a doença lhe dar a estocada final, e perguntou-se se uma mãe tem o direito de sobreviver a uma filha que veio ao mundo através dela.
O pai de sua filha, de quem Helena se divorciara três anos antes de ser diagnosticada a doença da menina, tinha sido incansável no alento que dera às duas naquela fase trágica. Um homem que tinha sabido permanecer sempre de pé apesar de todas as tempestades.
Subitamente, Helena recordou-se que, no final do serviço fúnebre da filha de ambos, seu ex-marido, com os olhos a transbordar de água, lhe dera um carinhoso beijo na testa, a envolvera num abraço do tamanho do mundo, e, afagando o seu rosto com as mãos quentes e vigorosas de outros tempos, lhe dissera com um nó na garganta: “Agora somos só dois. A menina viverá para todo o sempre no coração de cada um de nós, que poderá ser um único coração se tu assim o desejares. Estarei para todo o sempre contigo. Para mim, sempre foste e sempre serás a Mulher e a Mãe. Sei que um dia voltarás. Não tardes…”
Helena sabia que o maior desejo de sua filha era vê-los juntos, mas nunca se tinha sentido preparada para voltar. Contudo, sabia que, naquele momento, em Londres, precisava desesperadamente da ajuda dele para não sucumbir à dor dilacerante que lhe consumia a alma de noite e de dia.
Quando o cruzeiro terminou, Helena telefonou ao ex-marido que se encontrava num congresso de anatomia patológica em Estocolmo, e apenas lhe disse que a dor se estava a agigantar e que não mais iria ter forças para a dominar. Seu ex-marido, incansável como sempre, disse-lhe que iria imediatamente cancelar a palestra que tinha sido convidado para proferir no dia seguinte na capital sueca, e que voaria no próximo avião que levantasse voo do aeroporto internacional de Arlanda rumo ao aeroporto internacional de Heathrow. Ela sentiu que um anjo bom, que era o seu ex-marido, estava a fazer tudo o que estava ao seu alcance para a salvar de se afundar na dor que, dia após dia, a vinha devorando. Sentiu-se subitamente invadida por uma suave brisa de paz, sabedora de que a ajuda humanitária para a sua catástrofe interior estava prestes a chegar, precisamente pela mão do homem que estava, também ele, a viver o drama da perda de uma filha. Mas quando o ex-marido lhe telefonou, ainda nessa noite, a informá-la que o seu voo tinha a chegada a Heathrow prevista para as 9 horas do dia seguinte, Helena temeu já não ter forças que lhe permitissem fazer a travessia de mais uma noite. Intuíu que a dor a tragaria antes da chegada do seu salvador.
Na manhã seguinte, quando se preparava para ir esperar o pai de sua filha ao aeroporto de Heathrow, ele telefonou-lhe a anunciar que o voo havia sido cancelado e que só chegaria num outro voo, oito horas mais tarde.
E agora? Que faria Helena nesse prolongamento de espera de tantas horas, naufragada num oceano de aflição, com as forças à deriva, sem ter junto de si, nada nem ninguém para a salvar ? Ciente de que não iria conseguir aguentar a espera, correu, qual cavalo sem freio, para um táxi e apeou-se em Tower Pier para embarcar num derradeiro cruzeiro no Thames, com a cabecinha de sua filha aconchegada no seu peito de mãe. Desta vez, sabia que iria dar uma grande alegria à sua menina, ao anunciar-lhe que, muito em breve, partiria para junto dela.
Entrou no barco, sentou-se e voltou a aconchegar a cabecinha da sua pequenina no seu peito de mãe e a entrelaçar maternalmente a mão direita na mão esquerda dela.
Quando abandonou o barco em Westminster Pier, rumou ao Hotel Ritz, onde sempre ficava hospedada. Correu para o quarto, ingeriu uma caixa cheia de comprimidos “Lorenine” e bebeu um sem número de doses de “Gordon´s” - Special Dry Gin. Escreveu um bilhete ao homem que se preparava para a salvar, e, introduzindo-o num envelope que lhe endereçou, colocou-o sobre a mesinha de cabeceira junto da caixa dos comprimidos, onde sabia que seria imediatamente detectado.
Quando o seu ex-marido chegou a Heathrow e não a viu, teve o pior pressentimento possível, mesmo antes de ouvir dizer que, de Londres, vinham fumos de que uma portuguesa tinha aparecido morta no Ritz.
Apanhou um táxi que fez voar até Londres. Chegado à “suîte” que ela ocupava no Ritz, transpôs, desvairado, a barreira constituída por agentes especiais da “Scotland Yard” e pela equipa de reportagem do jornal britânico “The Sun”, e deparou com o cadáver da mulher que tinha sido sua e que ele sempre pedira a Deus que voltasse a ser sua. Aproximou-se do corpo mortificado dela, envolto agora, tal como em vida, por uma mortalha. E o rosto dela, que ele destapou levemente, fê-lo estremecer e soltar um longo grito de aflição. De seguida, mergulhou fundo num pranto de agonia.
Quando finalmente conseguiu recuperar alguma serenidade, o Inspector Copperfield da “Scotland Yard” solicitou-lhe a exibição de um documento comprovativo da sua identidade, após o que lhe entregou uma fotocópia do bilhete que se encontrava dentro do envelope, explicando-lhe que o original teria de ficar apreendido até ao final das investigações, por constituir um elemento de prova indiciária.
Reconhecendo a caligrafia de sua ex-mulher, ele leu: “Meu Querido Pedro: Desculpa não ter conseguido esperar por ti. Na verdade, não quis que empreendesses uma tarefa que, desta vez, seria certamente inglória. Neste mundo, já não existe salvação para mim. Preciso de repousar eternamente junto da nossa filha. Juntas, esperaremos ansiosamente por ti, já que, nesta vida, nunca consegui amar-te como merecias. Se quiseres estar junto de nós duas, faz um passeio de barco no Thames, ao entardecer. Beijo-te para sempre, com profunda gratidão. Helena.”
O ex-marido de Helena tinha morrido pela segunda vez. A primeira tinha sido aquando da morte da filha de ambos. Mas, naquele instante, teve uma certeza que lhe deu ânimo: sua filha estava agora em festa com a chegada da mãe ao céu, e esta estava feliz porque finalmente reencontrara sua filha. Se o céu estava em festa, sentiu que tinha, também ele, de se regozijar com a felicidade das duas mulheres que mais amara na vida.
Feita a autópsia médico-legal do cadáver de Helena, seu ex-marido regressou a Lisboa no mesmo avião que transportou os restos mortais dela e acompanhou-a à sua última morada.
Finda a cerimónia fúnebre, voltou a ler a última mensagem escrita de Helena: "Se quiseres estar junto de nós duas, faz um passeio de barco no Thames, ao entardecer.”
Volvidos cinco dias, o ex-marido de Helena embarcou, ao entardecer, num cruzeiro no Thames, entre Waterloo Pier e Greenwich. Quando entrou, o ar quente daquele final de tarde de Agosto transformou-se numa suave brisa primaveril. Sentiu que sua filha e Helena estavam muito próximas de si e que, ao vê-lo entrar no barco, ambas sorriram felizes. Invadido por uma inaudita sensação de paz, dirigiu-se à parte descoberta do barco com os dois ramos de flores que instantes antes tinha comprado. Empunhando o ramo de lírios brancos - as flores preferidas de Helena, e o ramo de rosas amarelas - as flores preferidas da filha de ambos, lançou-os nas águas do Thames e, olhando o céu azul, onde vislumbrou o sorriso de felicidade de ambas, disse-lhes: “Princesas, aceitai estas flores como sinal do meu eterno amor por vós!”

Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa

11 comentários:

  1. Fico sem palavras! impressionantemente bonito!
    Bjs

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  2. É anti natural uma mãe entregar a filha à sepultura!Mas muitas vezes é na doença que conhecemos o sabor do essencial da vida. Ainda assim, seja com a candura duma criança, seja com a raiva de uma mãe ferida pela perda, a medicina cobre-se de humildade, confessa as suas insuficiências, porque as ameaças da vida são cada vez mais, humilhantemente definitivas.
    Comovente esta história,talvez real...em que a dimensão da dor, é como um escurecer da sala para um visionamento do filme da sua própria vida e Helena não suportou o que viu... O futuro é sempre perto...e por vezes, demasiado perto!
    Beijos
    Graça

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  3. Triste. Triste. A dor da perda de um filho, acho que nunca se consegue ultrapassar. Só com muita ajuda, fé e amor,se levará a vida para a frente, senão morre-se um pouco a cada dia.

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  4. Um texto lindíssimo, Isabel!
    Não li a obra, embora conheça o título. E fiquei na dúvida... é uma reescrita sua, aliás belíssima, repito, sob a temática da obra de P.F. Thomése? Ou é transcrição de um excerto?

    Quanto ao sentimento de perda de um filho, conheci de bem perto esse drama na família e sei que é tão trágico que é impossível superar :((

    Um beijo,

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  5. Respondendo a Fragmentos Culturais: Há uma citação de P.F.Tomése, mas o texto ao qual dei o título de "Reencontro", é da minha autoria. Quando escrevo um texto que, no final, apresenta o meu nome, estamos perante um texto da minha autoria.
    Um beijo.

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  6. Respondendo ainda a Fragmentos Culturais: A perda de um filho é uma dor inultrapassável, porque nos atravessa a alma. E aprender a viver com essa dor, a geri-la em cada dia, em cada hora, em cada minuto e em cada segundo, é um trabalho tão árduo! É o permanente carregar de uma cruz! O meu carinho, amor e solidariedade vão para as mães que são "mortas-vivas", por carregarem consigo essa dor. Fico feliz se puder, por alguma forma, oferecer-lhes conforto e serenidade para conseguirem viver nessa tormenta.
    Vi hoje "Hereafter" que já comentou no seu blog. Chorei no cinema com o sofrimento do menino que perdeu o irmão. Amor lindo o que os unia! Dramática a dor da separação! E, chegada a casa, sentei-me e chorei de novo a dor daquele menino. É uma dor que nos abate a todos.
    Um beijo e um abraço muito apertado.

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  7. A perda é exactamente isso. Perda. Pode-se "elaborar" melhor ou pior o luto, mas a sensação de vazio permanece. Em boa parte das vezes, permanece sempre um traço quase/ou patológico.
    Se me permitir vou voltar.

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  8. Isabel ,
    vim agradecer a sua visita e deparo - me com este texto que , ainda que de uma grande tristeza , é belo pela forma como é descrita esta dor que não tem nome .

    beijo

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  9. Boa noite Isabel,

    Muito agradeço sua preocupação em me elucidar! Não tinha pedido tal! Foi uma interrogação deixada no ar :)

    Tinha a percepção de ser uma 'reescrita' ou recriação, se assim o preferir, sob temática da 'transcrição' inicial. Uma espécie de 'mote' (como sói usar-se, regra geral, no texto poético).

    Volto a referir que a sua escrita é de grande sensibilidade, com uma estética muito cuidada!

    Uma beijo,

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  10. ... peço desculpa, mas é um assunto que tenho dificuldade em explanar, a perda de um filho...

    Um beijo,

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  11. Querida Fragmentos Culturais:

    Entendo-a tão bem! Compreendo o seu silêncio.
    Um beijinho.

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