domingo, 27 de fevereiro de 2011

O feitiço de África

Quando a tarde desmaia
e uma esfera de fogo tinge o horizonte,
o beijo de África aveluda o meu rosto
e o seu sol deita-se na minha alma,
afagando a saudade de tempos de outro tempo.
Então, África enleia-me pela cintura
e canta ao meu ouvido,
canções que trazem o perfume dos deuses.
E quando a noite cai
e as estrelas se enternecem,
vislumbro,
lá muito ao longe,
no firmamento de África,
uma estrela que brilha mais intensamente do que todas as outras:
é o feitiço de África,
essa encantadora de corações
e hipnotizadora de almas.

Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Castanholas para a minha avó

Junto da Catedral de Salamanca, verdadeiro ex-libris da cidade, de avassaladora grandiosidade e incomensurável riqueza arquitectónica, Isabel deteve-se a contemplar um par de castanholas com fundo azul-marinho, exposto na montra de uma loja de “recuerdos”.
Lembrou-se da avó – “a avó muito amiga e dedicada, Maria Gabriela”, como ela sempre fazia questão de terminar as cartas que escrevia à neta. Veio-lhe à memória o porte distinto e a doçura de um olhar a prodigalizar-lhe todo o amor, o festival de luz, cor e som que morava em cada Natal da sua infância, e a coutada de prendas para toda a família em que o salão do velho casarão da avó se transformava em cada consoada.
Todas os anos, na noite de 24 de Dezembro, a avó Gabriela, qual fada boa roubada aos deuses, oferecia quinze prendas a cada um dos quinze elementos da família que se juntavam no salão. E para deleite dos mais novos, todas as prendas correspondiam religiosamente às mais íntimas aspirações e secretos desejos que cada um deles acalentara durante um ano inteiro, e que a varinha mágica da avó satisfazia como ninguém.
Naquele Natal de 1967, entre as muitas prendas, a avó ofereceu a Isabel um par de castanholas que, sobre um fundo azul-marinho, tinham desenhada uma dançarina cheia de “salero”, com um conjunto de saias hiper-coloridas, empunhando umas “castañuelas” e ensaiando passos de uma fina elegância.
Nesse serão, Isabel não mais largou as castanholas, cujo som teimou em acompanhar a avó ao piano, formando um duo que encheu de luz o velho casarão. A avó sorria, como sorria sempre, ofertando a Isabel a pureza do seu sorriso, e estava tão feliz quanto ela, porque uma vez mais, a tinha feito feliz, e nisso - fazer os outros felizes, a avó era exímia.
“Como é fácil satisfazer uma criança!” - As palavras da avó naquele serão atravessaram o pó dos tempos, e revestiam-se agora de uma terna musicalidade de saudade que inundava Isabel, despertando nela o desejo de ter outra vez sete anos e ser de novo acariciada pelo brilho do sorriso da avó, que enchia o seu pequeno mundo de paz e ofuscava as luzes dos candelabros.
A partir desse Natal, Isabel tocava sempre castanholas em jantares de família, para gáudio da avó que, no final da actuação conjunta de ambas - a avó ao piano e Isabel com as castanholas, nunca se coibia de exclamar um “Bravo!”
Isabel lembrou-se que, desde a noite em que as recebera, as castanholas sempre tinham estado penduradas na porta do seu guarda-vestidos à laia de ornamento e como sinal da presença viva da avó, e daí só saíam quando Isabel as tocava em casa da avó, por entre as finas gargalhadinhas desta, ou sozinha no seu quarto.
Mas a roda da vida girou, a mesma roda que dos sete aos quarenta e dois anos de Isabel, fez desaparecer as castanholas na bruma do tempo, por entre as alegrias e as agruras da vida.
O sino da catedral de Salamanca entoou as seis horas da tarde e Isabel sentiu-se subitamente invadida por uma inexcedível vontade de tocar as castanholas com fundo azul-marinho e ofertar a actuação à sua avó.
E porque o impulso foi forte demais, entrou na loja de “recuerdos” e comprou as “castañuelas”. Não resistiu a tocá-las. Percorreu o caminho que a separava da “Plaza Mayor”, sempre a tocar castanholas. Do alto dos céus descia agora uma sinfonia para piano. Concomitantemente, o riso celestial da avó Gabriela ecoou. Ou seria o riso de Deus? Não seria a mesma coisa? Não estaria a avó sentada à direita de Deus Pai, zelando dia e noite pela existência de Isabel, tocando agora piano para abrilhantar a actuação de castanholas da neta na capital europeia da cultura?
Isabel compreendeu que a doce recordação das castanholas naquele Natal de 1967 era uma luz viva que lhe iluminava o caminho para onde quer que fosse, e que há acontecimentos da nossa infância que, de tão ternos, se instalaram um dia a ferro e fogo na nossa memória, para, a dada altura, deixarem de ser apenas uma lembrança e passarem a ser um rasto cintilante de tempos idos que, inelutavelmente, nos acompanha até ao fim dos nossos dias.
Serena e confiante de que a actuação de castanholas estava a ser um êxito para sua avó, Isabel olhou para o céu de Salamanca, vislumbrou o rosto harmonioso da avó Gabriela, retribuiu-lhe o sorriso de encantamento e, levantando as castanholas para o céu, segredou-lhe: “Avó! Estas são para ti!”

Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa.

sábado, 12 de fevereiro de 2011


“Um filho sem pais é órfão. Mas como se chamam pai e mãe de uma filha falecida?” – P.F.Thomése, “A filha-sombra”, pag 17.


Reencontro

Naquele entardecer de Agosto, Helena entrou no barco para um cruzeiro no Thames, entre Waterloo Pier e Greenwich.
Decidira viajar de Lisboa até Londres para, uma vez mais, sobre as águas do Thames, ter a doce ilusão de estar a navegar de mão dada com sua filha e a afagar a cabecinha dela, aconchegando-a no seu peito de mãe.
Sua filha vibrava com os cruzeiros no Thames, com aquela vibração própria dos seis anos de idade, em que o corpo, a alma e os sentidos em uníssono se fundem numa vibração festiva, cheia de luz, cor e música.
Helena reviveu o último cruzeiro que, ao entardecer, ambas tinham feito naquelas águas, de mãos entrelaçadas, levando sua filha a cabecinha encostada no seu peito. De quando em vez, a pequenina apenas lhe largava a mão para lhe afagar a face, com o que, acima de tudo, afagava a sua alma de mãe. Este ser humano tão pequenino, era um permanente afago para Helena.
Um caudal de memórias fez desfilar à frente desta mãe, um a um, num cortejo de divina alucinação, todos os passeios que tinha feito com sua filha na capital britânica.
Sorriu com inigualável doçura ao recordar o número infindável de vezes que se tinham deslocado a Craven Hill, para visitarem o “London Toy and Model Museum”, à Marylebone Road, para visitarem o “Madame Tussaud´s” ou o “London Planetarium”, e ao Regent´s Park, para visitarem o “Zoo”.
Depois, Helena mergulhou numa nuvem de estrelinhas ao recordar as inúmeras vezes que tinha fotografado sua filha em Trafalgar Square, a dar milho aos pombos, sob o olhar atento do vencedor da batalha naval de Trafalgar – Almirante Lord Nelson, que, no alto da “Nelson´s Column”, com uma altura de 44 metros, e cercado por quatro majestáticos leões de bronze, surge como o guardião de Londres e o garante da segurança das suas gentes.
À frente de Helena, desfilaram de seguida, os almoços que tinham feito juntas no restaurante da “National Gallery”, numa mesa posicionada ao pé do mural da Paula Rego, com vista para Trafalgar Square.
Vieram-lhe ainda à memória as fotografias que tirara a sua filha junto do querubim de madeira dourada – o “Fat Boy of Pie Corner”, no cruzamento da Giltspur Street com a Cock Lane, os passeios feitos nas barquinhas da roda gigante instalada nos “Jubilee Gardens”, à beira do Thames – “British Airways London Eye”, com Londres subserviente a seus pés, os jogos e bonecos comprados em Regent Street, no “Hamleys”, os livros infantis adquiridos em Charing Cross Road, na “Waterstones” - a maior livraria da Europa, onde ela e a filha passavam tardes, esquecidas, percorrendo os sete andares, divertindo-se no espaço para “Internet” e deliciando-se nos restaurantes e cafés.
Helena viajava frequentemente para Londres, porque o desafogo económico assim lhe o permitia, e o gosto e o interesse por tudo o que tivesse um cariz anglo-saxónico, a tal a impeliam. Levava sempre consigo a filha que, desde cedo, aprendeu a amar Londres como a sua segunda cidade.
A dor dilacerante que passou a habitar Helena desde havia oito meses, viajava sempre consigo, enegrecendo o sol dos seus dias e fazendo das suas noites poços de negrume sem fundo. A angústia da perda enlutava a sua alma de mãe, crucificando-a até às entranhas e envolvendo-a numa mortalha da qual não mais se conseguiria libertar até ao fim dos seus dias. Uma mulher mortificada dentro de uma mortalha. Não é assim que se sente uma mãe que perde uma filha? Não tem essa mulher a alma num rebentamento permanente, com aquela que é a maior dor do mundo? Não é ela que vive num holocausto sem fim à vista? Não é ela o ser cujo pranto nunca pode esperar? Não é ela a pessoa que foi esfacelada, supliciada e, finalmente, também ela sepultada? Tal era Helena!
Olhou para um grupo de japoneses que, à sua frente, com indisfarçável avidez, ia imortalizando todos os monumentos da capital britânica com máquinas fotográficas e câmaras de filmar de alta tecnologia.
Depois, deteve-se a contemplar cinco robustos e vermelhuscos alemães que riam e cantavam com voz entaramelada, a denunciar excesso de consumo de álcool.
Interrogou-se como era possível o mundo não ter acabado se sua filha tinha morrido. Como continuava a girar a roda da vida, se sua filha já cá não estava com a vitalidade dela para a impulsionar? Como continuavam a existir os cruzeiros no Thames, depois dela e sem ela? Se a doença a fulminara, como tinha ficado de pé a cidade de Londres que era dela?
A alegria que continuava a existir nas pessoas, consubstanciava para Helena, para além de uma afronta à sua sobrevivência – que mais era ela do que um ser sobrevivente ? -, uma profanação da memória da sua menininha.
Lembrou-se do cortejo de horrores arrastados pela leucemia de sua filha, do internamento no Hospital de Hemmelsmith, em Londres, catorze meses antes, do estado de prostração em que as sessões de quimioterapia a deixavam, qual passarinho assustado em busca do seu ninho, do sorriso angelical que o rosto já moribundo dela lhe ofertara escassas horas antes de a doença lhe dar a estocada final, e perguntou-se se uma mãe tem o direito de sobreviver a uma filha que veio ao mundo através dela.
O pai de sua filha, de quem Helena se divorciara três anos antes de ser diagnosticada a doença da menina, tinha sido incansável no alento que dera às duas naquela fase trágica. Um homem que tinha sabido permanecer sempre de pé apesar de todas as tempestades.
Subitamente, Helena recordou-se que, no final do serviço fúnebre da filha de ambos, seu ex-marido, com os olhos a transbordar de água, lhe dera um carinhoso beijo na testa, a envolvera num abraço do tamanho do mundo, e, afagando o seu rosto com as mãos quentes e vigorosas de outros tempos, lhe dissera com um nó na garganta: “Agora somos só dois. A menina viverá para todo o sempre no coração de cada um de nós, que poderá ser um único coração se tu assim o desejares. Estarei para todo o sempre contigo. Para mim, sempre foste e sempre serás a Mulher e a Mãe. Sei que um dia voltarás. Não tardes…”
Helena sabia que o maior desejo de sua filha era vê-los juntos, mas nunca se tinha sentido preparada para voltar. Contudo, sabia que, naquele momento, em Londres, precisava desesperadamente da ajuda dele para não sucumbir à dor dilacerante que lhe consumia a alma de noite e de dia.
Quando o cruzeiro terminou, Helena telefonou ao ex-marido que se encontrava num congresso de anatomia patológica em Estocolmo, e apenas lhe disse que a dor se estava a agigantar e que não mais iria ter forças para a dominar. Seu ex-marido, incansável como sempre, disse-lhe que iria imediatamente cancelar a palestra que tinha sido convidado para proferir no dia seguinte na capital sueca, e que voaria no próximo avião que levantasse voo do aeroporto internacional de Arlanda rumo ao aeroporto internacional de Heathrow. Ela sentiu que um anjo bom, que era o seu ex-marido, estava a fazer tudo o que estava ao seu alcance para a salvar de se afundar na dor que, dia após dia, a vinha devorando. Sentiu-se subitamente invadida por uma suave brisa de paz, sabedora de que a ajuda humanitária para a sua catástrofe interior estava prestes a chegar, precisamente pela mão do homem que estava, também ele, a viver o drama da perda de uma filha. Mas quando o ex-marido lhe telefonou, ainda nessa noite, a informá-la que o seu voo tinha a chegada a Heathrow prevista para as 9 horas do dia seguinte, Helena temeu já não ter forças que lhe permitissem fazer a travessia de mais uma noite. Intuíu que a dor a tragaria antes da chegada do seu salvador.
Na manhã seguinte, quando se preparava para ir esperar o pai de sua filha ao aeroporto de Heathrow, ele telefonou-lhe a anunciar que o voo havia sido cancelado e que só chegaria num outro voo, oito horas mais tarde.
E agora? Que faria Helena nesse prolongamento de espera de tantas horas, naufragada num oceano de aflição, com as forças à deriva, sem ter junto de si, nada nem ninguém para a salvar ? Ciente de que não iria conseguir aguentar a espera, correu, qual cavalo sem freio, para um táxi e apeou-se em Tower Pier para embarcar num derradeiro cruzeiro no Thames, com a cabecinha de sua filha aconchegada no seu peito de mãe. Desta vez, sabia que iria dar uma grande alegria à sua menina, ao anunciar-lhe que, muito em breve, partiria para junto dela.
Entrou no barco, sentou-se e voltou a aconchegar a cabecinha da sua pequenina no seu peito de mãe e a entrelaçar maternalmente a mão direita na mão esquerda dela.
Quando abandonou o barco em Westminster Pier, rumou ao Hotel Ritz, onde sempre ficava hospedada. Correu para o quarto, ingeriu uma caixa cheia de comprimidos “Lorenine” e bebeu um sem número de doses de “Gordon´s” - Special Dry Gin. Escreveu um bilhete ao homem que se preparava para a salvar, e, introduzindo-o num envelope que lhe endereçou, colocou-o sobre a mesinha de cabeceira junto da caixa dos comprimidos, onde sabia que seria imediatamente detectado.
Quando o seu ex-marido chegou a Heathrow e não a viu, teve o pior pressentimento possível, mesmo antes de ouvir dizer que, de Londres, vinham fumos de que uma portuguesa tinha aparecido morta no Ritz.
Apanhou um táxi que fez voar até Londres. Chegado à “suîte” que ela ocupava no Ritz, transpôs, desvairado, a barreira constituída por agentes especiais da “Scotland Yard” e pela equipa de reportagem do jornal britânico “The Sun”, e deparou com o cadáver da mulher que tinha sido sua e que ele sempre pedira a Deus que voltasse a ser sua. Aproximou-se do corpo mortificado dela, envolto agora, tal como em vida, por uma mortalha. E o rosto dela, que ele destapou levemente, fê-lo estremecer e soltar um longo grito de aflição. De seguida, mergulhou fundo num pranto de agonia.
Quando finalmente conseguiu recuperar alguma serenidade, o Inspector Copperfield da “Scotland Yard” solicitou-lhe a exibição de um documento comprovativo da sua identidade, após o que lhe entregou uma fotocópia do bilhete que se encontrava dentro do envelope, explicando-lhe que o original teria de ficar apreendido até ao final das investigações, por constituir um elemento de prova indiciária.
Reconhecendo a caligrafia de sua ex-mulher, ele leu: “Meu Querido Pedro: Desculpa não ter conseguido esperar por ti. Na verdade, não quis que empreendesses uma tarefa que, desta vez, seria certamente inglória. Neste mundo, já não existe salvação para mim. Preciso de repousar eternamente junto da nossa filha. Juntas, esperaremos ansiosamente por ti, já que, nesta vida, nunca consegui amar-te como merecias. Se quiseres estar junto de nós duas, faz um passeio de barco no Thames, ao entardecer. Beijo-te para sempre, com profunda gratidão. Helena.”
O ex-marido de Helena tinha morrido pela segunda vez. A primeira tinha sido aquando da morte da filha de ambos. Mas, naquele instante, teve uma certeza que lhe deu ânimo: sua filha estava agora em festa com a chegada da mãe ao céu, e esta estava feliz porque finalmente reencontrara sua filha. Se o céu estava em festa, sentiu que tinha, também ele, de se regozijar com a felicidade das duas mulheres que mais amara na vida.
Feita a autópsia médico-legal do cadáver de Helena, seu ex-marido regressou a Lisboa no mesmo avião que transportou os restos mortais dela e acompanhou-a à sua última morada.
Finda a cerimónia fúnebre, voltou a ler a última mensagem escrita de Helena: "Se quiseres estar junto de nós duas, faz um passeio de barco no Thames, ao entardecer.”
Volvidos cinco dias, o ex-marido de Helena embarcou, ao entardecer, num cruzeiro no Thames, entre Waterloo Pier e Greenwich. Quando entrou, o ar quente daquele final de tarde de Agosto transformou-se numa suave brisa primaveril. Sentiu que sua filha e Helena estavam muito próximas de si e que, ao vê-lo entrar no barco, ambas sorriram felizes. Invadido por uma inaudita sensação de paz, dirigiu-se à parte descoberta do barco com os dois ramos de flores que instantes antes tinha comprado. Empunhando o ramo de lírios brancos - as flores preferidas de Helena, e o ramo de rosas amarelas - as flores preferidas da filha de ambos, lançou-os nas águas do Thames e, olhando o céu azul, onde vislumbrou o sorriso de felicidade de ambas, disse-lhes: “Princesas, aceitai estas flores como sinal do meu eterno amor por vós!”

Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa

sábado, 5 de fevereiro de 2011


"Nunca conheci nenhuma outra pessoa que fosse capaz de responder tão plenamente a tudo o que o mundo e a vida lhe ofereciam: à música, a um passeio na floresta matinal, à cor e ao perfume de uma flor, à palavra sábia e justa de uma pessoa. (...) Não conheci ninguém que fosse capaz de se alegrar com as coisas mais pequenas da vida, como ela: pessoas e animais, estrelas e livros, interessava-lhe tudo, (...) mas aproximava-se de tudo o que a vida lhe dava e mostrava, com a alegria incondicional de uma criatura que veio ao mundo para desfrutá-lo." - Sándor Márai, "As velas ardem até ao fim".


"Avé Bárbara!"

Àquela hora do crepúsculo, o mar espreguiçava-se na areia, estendendo um manto de renda branca aos pés de Bárbara. As gaivotas piavam, abrilhantando a sinfonia das ondas. Mais além, uma caravela quebrava as águas. Roçando a linha do horizonte, o sol formava uma bola cor-de-laranja que dir-se-ia estar a ser paulatinamente tragada pelo oceano, no qual se ia afundando.
Bárbara mergulhou o corpo no mar da Figueira da Foz e sorriu afagada por uma sensação de paz plena.
Os seus três filhos saltitavam à beira mar, apanhavam búzios e jogavam à apanhada. Eram carne da sua carne e uma dádiva dos céus. Tinham 9, 7 e 5 anos de idade. Todos rapazes na idade da inocência. A sua algazarra era um hino à vida.
Perto deles, numa espreguiçadeira, o marido de Bárbara lia o jornal.
Bárbara seguiu o trilho da caravela nas águas, perscrutou o marido e os filhos e sentiu o perfume de um completo bem-estar penetrar em si.
Que mais podia pedir à vida? O marido e os filhos eram pessoas maravilhosas e gozavam de boa saúde. Bárbara era uma mulher bem sucedida familiar, profissional e socialmente e tinha grandes amigos. Além disso, sabia que dentro de três meses, iria finalmente voltar a Moçambique, o país do qual se despedira 30 anos antes, e que a acarinhara até aos 15 anos de idade. Sempre sentira muitas saudades de África e, agora, estava prestes a concretizar o sonho de regressar a paragens onde o tempo corre com um ritmo sereno e a paz de espírito é uma realidade viva provinda de uma fonte inesgotável.
Mas este momento de felicidade revelou-se perecível, pois de súbito, Bárbara foi avassalada por um sentimento de angústia.
Fôra há quatro anos que, peremptoriamente, sem apelo nem agravo, tinha sido lançado contra si, o diagnóstico de cancro colo-rectal – adenocarcinoma do cólon. Seguira-se a intervenção cirúrgica para remoção do segmento do intestino afectado, a única forma de aniquilar a hidra até às entranhas, e de seguida, durante um ano, tinha sido submetida a duas terapias adjuvantes: radioterapia e quimioterapia.
Aprendeu que, a partir de então, tinha de estar sempre vigilante, porque a besta nunca dorme, e que essa vigilância, para ser eficaz, deve ser exercida de forma serena, mas vigorosa, sempre embalada pela esperança que, à sua passagem, vai repelindo aqueles medos infundados que tantas vezes assaltam e consomem quem se encontra no chamado "processo de remição" do cancro. Por isso, as regulares consultas de vigilância e os exames médicos periódicos na Delegação de Coimbra do Instituto Português de Oncologia passaram a fazer parte integrante da sua vida.
O seu pavor tinha um nome: "micro-metástases": aquelas metástases que, não sendo inicialmente detectáveis nos exames imagiológicos, só se tornam visíveis mais tarde, quando já nada pode ser feito para salvar a vida.
Por instantes, temeu já não ter tempo de fazer a sua tão sonhada viagem a Moçambique. Mergulhada nas águas, de frente para a linha do horizonte, rompeu num pranto.
O marido, o obreiro do seu renascimento, o homem que, recuperando um a um os destroços em que a doença a transformara, e que, reunindo-os e encaixando-os de novo, fizera Bárbara renascer em cada aurora, sentiu, subitamente, também ele, uma grande tristeza tomar conta de si. Levantou os olhos do jornal, observou Bárbara e intuiu que ela precisava desesperadamente dele naquele momento. Deu um salto da espreguiçadeira e, aproximando-se dela por trás, enleou-lhe a cintura. Depois, limpou-lhe as lágrimas salgadas com as suas mãos quentes, de um calor que vem da alma, deu-lhe um vigoroso beijo nos lábios molhados e trémulos, mergulhou os seus olhos nos dela, e sorriu. E aquilo que ele lhe disse sem palavras, devolveu-lhe a tranquilidade, a força e a segurança de que ela necessitava avidamente naquele momento.
Bárbara recordava-se que, depois da intervenção cirúrgica, tinha recomeçado, aos poucos, pela mão do marido, a ter esperança no futuro e a desfrutar das pequenas grandes coisas da vida, como o pôr-do-sol à beira-mar.
Faltava-lhe, todavia, voltar a Moçambique - o velho sonho que iria agora concretizar.

Passaram três meses. Os filhos saltitam, apanham búzios e jogam à apanhada à beira-mar. Junto deles, o marido de Bárbara lê o jornal na espreguiçadeira. Estão na Ilha de Inhaca, em Moçambique.
Bárbara está entre eles e com eles, mas não foi com eles. O rosto bem delineado dela surge recortando a linha do horizonte. Sorri invadida por uma paz que já não pertence a este mundo. Fica feliz por verificar que o caudal das águas vai progressivamente retomando o seu curso.
Subitamente, o filho mais pequeno corre para o colo do pai e chora abraçado a ele, dizendo-lhe que quer a mãe. O pai, com os olhos marejados de lágrimas, explica-lhe que a mãe repousa agora no céu, ao pé do Menino Jesus, e que, dia e noite, olha por ele, pelos manos e pelo papá.
Por detrás da linha do horizonte, lá onde o mar toca o céu, Bárbara continua a sorrir invadida por uma paz celestial.
O filho mais velho diz ao pai: “A mamã costumava apanhar búzios na praia connosco. Ficava muito feliz por encontrar búzios bonitos, e a partir de cada búzio, contava-nos uma história. A mamã vibrava com tudo. Nunca houve ninguém como a Mamã.”
O marido de Bárbara engole várias vezes seguidas numa tentativa, tão desesperada quanto vã, de evitar que o menino que é carne da sua carne e que é carne da carne dela, o veja chorar. Ouvir o menino dizer aquilo, dilacera-o até ao canto mais recôndito do seu ser.
“O sonho da mamã era voltar a Moçambique”, prosseguiu o menino mais velho. “Mas já não teve tempo. Deus chamou-a e ela teve de ir. Nós viemos, mas a mamã nunca mais voltou a Moçambique.”
“Enganas-te!”, retorquiu o pai. “A mamã voltou a Moçambique, sim! Ela está aqui connosco, e estará sempre onde quer que nos encontremos. Se se concentrarem e sorrirem como ela sempre sorria, verificarão que a mamã está aqui a apanhar búzios, e, se escutarem com atenção, ouvi-la-ão pedir-me que lhes conte a história de uma menina que saíu de Moçambique há 30 anos, e que sempre quis voltar. Querem ouvir?”
Numa chilreada, as três crianças saltaram para o colo do pai e disseram em uníssono: “Sim! Conta, papá, conta!”
Bárbara volta a sorrir. Ouve, também ela deliciada, a história. Está com eles agora em Moçambique, como estará com eles para todo o sempre. Olhando para o marido e os filhos, formula um desejo, que lutará com todas as suas forças para que se concretize: que todas as estrelinhas que há no céu, brilhem sempre por eles e para eles, e que a luz divina ilumine sempre o caminho à passagem deles.

Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa