domingo, 27 de março de 2011

                                                              Eternamente


- Mamã, o que é a imortalidade da lembrança?

- Meu filho, pensa em todo um conjunto de pessoas, de lugares e de acontecimentos que, atravessando o tempo, se perpetuam na nossa memória. Emoções que se eternizam em nós. Rastos cintilantes que perfumam a nossa alma, ou nuvens negras e densas que a fulminam. Nesse conjunto, encontrarás pessoas que fizeram grandes legados à Humanidade: pessoas que foram capazes de criações artísticas geniais, como Beethoven, que deram à ciência contributos de grande vulto, como Einstein, que lutaram aguerridamente pelos direitos cívicos e políticos das minorias desfavorecidas, como Nelson Mandela, que cuidaram dos doentes e dos sem-abrigo com amor incondicional, como Madre Teresa de Calcutá. Mas nesse conjunto, encontrarás igualmente pessoas que se cristalizaram na nossa memória por terem cometido inacreditáveis monstruosidades, como Bin Laden ou Adolf Hitler. Também a nossa lembrança é acariciada por brisas celestiais mágicas, que encerram em si instantes e lugares: o som da palavra “mamã”, que o nosso bebé pronuncia pela primeira vez, no exacto momento em que, olhando-nos nos olhos, vê o mundo através deles e para além deles, o sorriso com que, no jardim da nossa infância, a avó nos senta no colo e nos acaricia a alma, o abraço do tamanho do mundo com que um amigo nos agasalha o coração instantes antes de entrarmos para o bloco operatório, a audição de “O Coro dos Escravos Hebreus” (3º acto do “Nabucco”, de Verdi), no “Teatro Alla Scala”, em Milão, o beijo que um pequeno anjo com a pele da cor do ébano e a alma branca, nos dá na mão, na cidade do Mindelo, depois de lhe termos dado uma nota de 1.000 escudos cabo-verdianos, o pôr-do-sol em Mombasa, as acácias rubras nas avenidas do Maputo, o perfume das frésias no quintal da nossa meninice. Porém, na nossa lembrança, também estão gravados instantes e lugares que para aí foram arrastados pela lava de vulcões em erupção, em congregação de esforços com ventos ciclónicos: o semblante pesado do oncologista na hora em que nos comunicou que o carcinoma da nossa irmã estava irremediavelmente metastizado, o olhar de tresloucada perdição da mãe no momento em que lhe comunicaram a morte do filho, o dia em que o nosso marido recebeu alta do Hospital para, juntos, reaprendermos a viver, depois de ele ter sofrido a amputação das duas pernas, o olhar vago com que o condenado à cadeira eléctrica se despede dos filhos no corredor da morte, a visão dos fornos crematórios nos antigos campos de extermínio nazis, a queda das Twin Towers e os saltos para a morte das pessoas que se encontravam nos pisos superiores, o desastre nuclear de Chernobyl e o cortejo de dramas arrastado pela libertação da nuvem radioactiva, o sismo com a magnitude de 9 na Escala de Richter, no Japão, o tsunami que se lhe seguiu, com ondas a atingir os 23 metros de altura, a ameaça nuclear na central de Fukushima Daichii. Todos estes momentos únicos - maravilhosos ou trágicos, marcaram um dia, a nossa alma a ferro e fogo, fazendo com que a sua lembrança não mais nos abandonasse e passasse, irreversivelmente, a fazer parte de nós.

Fui clara, meu filho?

- Sim, mamã. Gosto muito, muito, muito de ti. Tu és a imortalidade da minha lembrança.

- Meu filho, as tuas palavras permanecerão em mim para todo o sempre. Também te amo muito, muito, muito! Eternamente.

domingo, 20 de março de 2011

“Se quereis contemplar o espírito da morte abri de par em par o vosso coração ao corpo da vida. Porque a vida e a morte são uma só coisa, como são uma só coisa o rio e o mar.” - khalil Gibran, “O Profeta”, pag. 54.

Pela mão do anjo

Já o crepúsculo tinha estendido o seu manto sobre a cidade, quando Leonor chegou ao prédio onde morava.
Do céu desprendiam-se agora milhões de cometas, enquanto uma melodia brutalmente terna, tocada ao piano e cantada por querubins, ecoava pela cidade, inundando o espírito de todos com uma paz que não pertencia a este mundo. As vozes dos querubins entoavam:
“Ah! That day of tears and mourning!
From the dust of earth returning,
Man for judgement must prepare him;
Spare, O God, in mercy spare him!
Lord, all pitying, Jesu Blest,
Grant them Thine eternal rest. Amen.”
Mas era dentro do prédio de Leonor que o som da “Lacrimosa”, o seu trecho predilecto do “Requiem” de Mozart, se fazia ouvir com maior intensidade.
Subiu ao segundo andar e foi-lhe dado constatar que da porta de sua casa saíam feixes de luz multicolor, ao mesmo tempo que, do interior, brotava com ímpeto a harmoniosa conjugação do som do piano com os cânticos celestiais.
Entrou e dirigiu-se ao salão. Sentada ao piano, estava uma senhora elegantemente vestida por Christian Dior, envolta numa neblina de Eau de Toilette Femme de Montblanc, com um olhar azul ultramarino e uma luminosa e farta cabeleira de caracóis loiros. As mãos eram alvas e esguias, exibindo o dedo anelar da mão esquerda, uma jóia Cartier. À direita da pianista, o coro de querubins cantava com fervor.
Sem deixar de tocar, e sem que o coro de querubins parasse de cantar, a senhora olhou fixamente para Leonor e sorriu com suprema ternura.
Enfeitiçada pela quietude daquele olhar e pela doçura do sorriso que o ornamentava, Leonor sentou-se no sofá junto ao piano, abrindo a alma à música e bebendo as vozes dos querubins.
Quando, volvidos alguns instantes, a actuação conjunta dos querubins e da senhora terminou, Leonor teve vontade de lhe perguntar quem era ela, o que fazia ali e por que razão estava acompanhada pelos querubins, mas, concomitantemente, sentiu que a inaudita tranquilidade espiritual que aquele desempenho concertado tinha acabado de lhe ofertar, tornava indelicada a colocação de semelhantes questões.
Sorrindo sempre, a senhora continuou a fixar o olhar de Leonor, olhando através dele e para além dele. Com uma voz onde reinava a ternura, respondeu àquilo que Leonor gostaria de lhe ter perguntado:
- Vim buscar-te, minha querida.
Leonor sentiu um calafrio percorrê-la dos pés à cabeça. Olhou através da janela. Lá fora, uma luminosidade cinzenta abatia-se sobre a cidade. Tinha, então, chegado a sua hora? Os seus olhos ficaram marejados de lágrimas que deslizaram por um rosto subitamente empalidecido.
A senhora ergueu-se, aproximou-se de Leonor e, colocando ambas as mãos sobre a face dela, afagou-lhe a alma. De seguida, beijou-lhe suavemente a testa e disse:
- Não receies nada. Fui eleita por Deus para te conduzir na viagem até ao lugar da paz celestial.
- O meu cancro…Vou piorar até mergulhar na fase terminal e, finalmente, empreender a viagem rumo ao repouso eterno? É isso, não é ?
Desta vez, foi nos olhos da senhora que se instalou a tristeza. Com a sua voz aveludada, observou:
- Minha querida Leonor, há quatro anos, foste acometida de um cancro colo-rectal e, como terapias adjuvantes da ostomia a que foste submetida, foi-te ministrada radioterapia e quimioterapia.
- A senhora sabe tudo isso?!
- Chama-me Graça e trata-me por tu. Lembras-te de um dia teres conversado mais detalhadamente com o teu médico oncologista, falando-lhe, inclusivamente, do livro que tinhas acabado de ler, intitulado “O cancro também pode morrer”, de um eminente oncologista do Hospital de Santa Maria?
- Estavas lá?! - questionou Leonor atónita.
- Eu sempre estive presente desde que fui eleita por Deus para te conduzir. Nesse dia em que falaste longamente com o teu médico oncologista, fui eu que te segurei o coração para que ele não caísse no chão e não se despedaçasse quando te foi dito que tinhas 10% de probabilidades de contrair metástases.
- Entendi, Graça. Vão ser detectadas metástases nos exames imagiológicos que, brevemente, irei realizar.
Graça baixou o olhar e acenou a cabeça positivamente. Depois, segurando as mãos de Leonor nas suas, disse-lhe:
- Serás de novo sujeita a sessões de quimioterapia, desta feita sem resultados palpáveis, após o que te induzirão o coma profundo. Nesse estado, dar-me-ás a tua mão e, juntas, partiremos.
- Mas tu és tão bonita e meiga, Graça!.. Dir-se-ia que és um anjo! Como podes ser tu a senhora da foice impiedosa?!...
- A travessia para a outra margem representa, invariavelmente, a transição para uma vida melhor. Quando vivemos em paz connosco próprios e com os outros, como sei que sempre aconteceu contigo, não tememos a morte. E, quando ela chega, entregamo-nos por inteiro, abrindo-lhe pacificamente os braços, para que ela nos tome e nos conduza nas suas asas.
- Mas, Graça…E se eu fugir de ti? - indagou Leonor, esforçando-se por desenhar um sorriso sardónico no seu rosto.
- Minha querida! - exclamou Graça, acariciando a face de Leonor. - Encontrar-te-ei sempre, porque quando é chegada a hora de uma pessoa, ela tem, inelutavelmente, de empreender a viagem.
- Quando partiremos?
- Vamos indo agora. Vou acompanhar-te através de um túnel de luz que vai desembocar num prado verde banhado pela paz celestial.
- Graça! - chamou Leonor preocupada. - Posso fazer-te uma pergunta?
- Todas as que quiseres.
- Como vão os meus pais aguentar a dor da perda da filha?
Foi com um sorriso maroto que Graça respondeu:
- Minha boa Leonor, não me obrigues a revelar as surpresas todas, mas, para tua tranquilidade, tenho de te transmitir que, muito em breve, o céu ficará em festa com a chegada dos teus pais. E agora, tenho uma outra surpresa para ti: a tua avó Marta espera-te à entrada do prado verde. Mal pode esperar pelo reencontro. Dá-me a tua mão e caminha a meu lado!
- A avó Marta sabe que vou chegar?! – perguntou Leonor sem caber em si de contente.
- Claro que sim! Achas que eu ia deixar de lhe contar? Ela apenas me pediu que não demorássemos.
Um túnel de luz tomou forma no salão de Leonor.
Esta, confiante, deu a mão a Graça e perguntou-lhe:
- Vais levar-me agora, e depois? Volto a ver-te? E diz-me: Vou ver a face de Deus? Nós, simples mortais, chegaremos algum dia, a ter o privilégio de ver o rosto de Deus?
Graça ofertou-lhe um sorriso do tamanho do universo e, quando se preparava para lhe responder pausada e serenamente, como era seu timbre, Leonor acordou na cama do quarto do Instituto Português de Oncologia, em Lisboa. O carcinoma que a massacrava, estava, há muito, irremediavelmente metastizado em vários órgãos do seu corpo, mostrando-se já ultrapassados os trinta dias que o médico oncologista previra que ela viveria.
Como as metástases não dessem tréguas a Leonor, a equipa médica tomou, nesse dia, a decisão de lhe induzir o coma.
Volvidos três dias, à hora do crepúsculo, quando uma luminosidade cinzenta se abatia sobre a cidade, Leonor sentiu o afago e o perfume de Graça no seu rosto e soube que um anjo bom estava ali para lhe dar a mão e a conduzir por um túnel de luz que a libertaria do sofrimento atroz só nesta vida consentido.
De mão dada com o anjo, iniciou a caminhada com passo firme.


Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa




domingo, 13 de março de 2011

Metamorfose

Sonha a crisálida um voo azul;
solta as asas que não tem; fende
o espaço que nunca viu. Imóvel,
tem todo o tempo para se iludir.

Mesmo que chova ou faça sol, o céu
da crisálida não muda: feito
com as teias do casulo, é o céu
da matamorfose, sem ar nem transparência.

Vive em mim essa crisálida. Deixo-a
transformar-se, sonhar o seu sonho
de voo, bater as asas que nunca teve.

E, se um dia sair do casulo, sei
que arrastará as teias da crisálida,
chorando o dia em que se fez borboleta.

in "O Breve Sentimento do Eterno", de Nuno Júdice, Edições Nelson de Matos, 2008, pag. 39.
Tempo

Se corre devagar o tempo, e o tempo
não corre, em que relógio contarei
os segundos que se demoram quando as
horas se precipitam, ou o amanhã

que nunca mais chega neste hoje
que já passou? Mas o tempo só o é
quando o perdemos; e ao ver que
é tarde, não se volta atrás, nem

as voltas que o tempo dá o voltam
a fazer andar. por isso é que o tempo
nos dá tempo para o ter, se ainda

houver tempo; e se tivermos de o perder,
nenhum tempo contará o tempo que se
gastou para saber o que se perdeu ou ganhou.

in "O Breve Sentimento do Eterno", de Nuno Júdice, Edições Nelson de Matos, 2008, pag. 37.

sábado, 5 de março de 2011

Eis que morreste. Mortalmente triste
Divaga a flor da aurora entre os teus dedos
E o teu rosto ficou entre as estátuas
Velado até que o novo dia nasça.

Se nenhum amor pode ser perdido
Tu renascerás – mas quando?
Pode ser que primeiro o tempo gaste
A frágil substância do meu sono.

(Sophia de Mello Breyner Anderson, “Eis Que Morreste”, in “Obra Poética” I, pag. 180.)


" A Valsa dos Flamingos"

Carolina acordou. Dentro de alguns instantes, o avião iniciaria a descida rumo ao aeroporto internacional de Mavalane, no Maputo. A voz da hospedeira anunciava que a temperatura do ar na capital moçambicana era de 28ºC, a humidade relativa, de 68%, e o vento soprava a uma velocidade de 10 Km/h SE.
Uma turista dinamarquesa que viajava ao lado de Carolina, comentou com ela que, felizmente, chegava ao Maputo na estação seca, com temperaturas mais baixas e menores concentrações de humidade no ar. Carolina sorriu. Preferia a estação das chuvas quentes, de Outubro a Março. Na verdade, sempre se sentira muito confortável durante o ano inteiro, com o clima do Maputo, que sofria a influência do regime das monções do Índico e da corrente quente do canal de Moçambique, mas, curiosamente, era a estação das chuvas quentes que lhe emprestava uma especial vitalidade, contrariamente ao que acontecia com tantas outras pessoas, que se queixavam de, nessa estação, passarem os dias e as noites mergulhadas numa neblina quente.
O cansaço que sentiu ao acordar, consequência das 11 horas de voo directo de Lisboa para o Maputo, dissipou-se num ápice quando olhou pela janela e os seus olhos se perderam no Índico.
Rashid era o nome dele, o homem que, catorze meses antes, a sacudira como um tremor de terra com a magnitude de 7 na Escala Aberta de Richter e a intensidade de 10 na Escala de Mercalli.
Recordou-se das duas estrelas que cintilavam no olhar azul dele, imenso como o Índico, de um sorriso generoso que irradiava serenidade, e de uma pele muito morena num corpo irrepreensivelmente esculpido. Um deus à face da terra! Tinha sido por este deus humano que Carolina se apaixonara perdidamente. Rashid tinha sido o único homem que, com um simples olhar, a penetrara até ao âmago da sua alma, incandescendo-a.
Era ela médica anestesista no Hospital Central do Maputo, casada com um cirurgião vascular em exercício no mesmo Hospital, quando Rashid, eminente cirurgião oncológico indiano, chegou àquela cidade, integrado numa equipa multidisciplinar de investigação científica na área do adenocarcinoma ductal invasivo.
Carolina conheceu-o num “cocktail” de recepção e boas vindas no “Hotel Vip Maputo”, na capital moçambicana, organizado pelo Director do Serviço de Oncologia do Hospital Central.
Ao olhar para ele, ficou enfeitiçada por um olhar penetrante do qual se desprendiam cometas. E quando ele tomou a sua mão e a beijou, dizendo que estava encantado por a conhecer, Carolina sentiu uma rápida elevação da temperatura corporal, ao mesmo tempo que teve o claro prenúncio de que estava prestes a abandonar o deserto afectivo no qual o seu casamento tinha, muito tempo antes, desembocado sem retorno, para entrar num luxuriante prado verde, atravessado por um rio de mel, em cujas margens, ela e Rashid passeariam de mão dada até ao fim dos seus dias.
Durante o “cocktail”, ele conversou animadamente com ela sobre a sua Índia e as razões que o tinham conduzido a Moçambique, enquanto o marido de Carolina, lacónico e sorumbático como sempre, preferiu integrar o círculo constituído por uma equipa de cirurgiões do Hospital Central do Maputo que, a um canto da sala, dissertavam sobre uma complexa e delicada intervenção cirúrgica a que um menino de Pemba iria ser submetido no dia seguinte, naquele Hospital.
Depois de ter conversado com Carolina, Rashid conduziu-a até um lago existente nos jardins do hotel, junto do qual passeavam flamingos, as aves preferidas dele. Contou-lhe que desde pequeno, devorava toda a literatura relativa aos flamingos e que era capaz de ficar horas a fio entretido a assistir às valsas daqueles dançarinos de plumagem flamejante.
No final do “cocktail”, separaram-se com a certeza de que, no dia seguinte, se voltariam a encontrar, desta feita, no auditório nº 1 da Faculdade de Medicina da Universidade Eduardo Mondlane, no Maputo, onde ele iria proferir uma palestra seguida de debate, subordinada ao tema “O adenocarcinoma ductal invasivo na Índia”, e à qual ela iria assistir integrada na equipa que a Administração do Hospital Central do Maputo decidira enviar à conferência. O marido dela não iria estar presente porque, à mesma hora, estaria em trânsito aéreo para o aeroporto internacional de O.R.Tambo, em Joanesburgo, acompanhando a transferência de um doente do Hospital Central de Maputo para o Hospital de Millpark.
No dia seguinte, finda a palestra e o debate que se lhe seguiu, ele abeirou-se dela, envolveu-a com o seu sorriso doce e, depois de o seu olhar quente ter uma vez mais tocado a alma dela, incandescendo-a, Rashid comunicou-lhe que para ele era vital continuar a encontrá-la.
De súbito, tudo ficou cor-de-rosa e perfumado, com flamingos a valsear em redor de ambos. Rashid acendeu uma fogueira na alma de Carolina, cujas chamas eram uma continuação da plumagem flamejante dos flamingos, e foi esse acendimento que fez com que ele passasse a fazer parte integrante da vida dela para todo o sempre.
Começaram a encontrar-se no exclusivo apartamento dele na capital moçambicana, situado entre Sommerschield e Polana, onde, à noite, no imenso terraço com vista deslumbrante sobre a Baía de Maputo, o seu amor não conhecia fronteiras.
Rashid sabia, como ninguém, fazê-la feliz. Quando as mãos morenas dele afagavam a pele clara dela, Carolina percorria os céus de lés-a-lés. Sempre que o corpo vigoroso dele encontrava o dela, o mundo de Carolina mergulhava num enorme fogo de artifício.
Ele fez da vida dela uma festa sob um céu permanentemente estrelado, e gostava de lhe chamar “Minha Estrela Polar”.
Dois meses depois de se conhecerem, tomaram a decisão conjunta de viverem sob o mesmo tecto e de ela comunicar previamente tal decisão ao marido, com vista a ser iniciado o Processo de Divórcio por Mútuo Consentimento.
Quando ela contou ao marido, ele olhou-a friamente, como aliás a vinha invariavelmente olhando desde havia muito tempo, e, de forma completamente inusitada e inopinada, saíu apressadamente de casa.
Indo ao encontro de Rashid, tirou do bolso interior do casaco a pistola semi-automática com o calibre 6,35 Browning, municiada, e, empunhando-a na direcção da região torácica esquerda de Rashid, a escassos metros deste, efectuou dois disparos que o fizeram tombar de imediato. Acto contínuo, apontou a mesma arma na direcção e contra a sua própria região parietal craniana e efectuou outro disparo, caindo também ele de imediato.
O marido de Carolina teve morte imediata, mas diferente foi a sorte de Rashid. Prontamente socorrido e transportado para o Hospital Central do Maputo, viria a ser contemplado por um desses insondáveis milagres do destino. Submetido a uma intervenção cirúrgica de urgência para remoção das balas alojadas na região torácica esquerda, acabaria por, no espaço de seis meses, ficar completamente curado das lesões provocadas pelos disparos, e sem sequelas.
Tudo apontava agora no sentido de que Carolina e Rashid poderiam viver o grande amor que tinha levado o marido dela a cometer aqueles actos. Porém, o sentimento de culpa e os remorsos de Carolina falaram mais alto, de forma ensurdecedora, e ela, que tinha sido a companhia e o apoio incondicional de Rashid durante o período de convalescença deste no Hospital, uma vez ele curado, não aguentou continuar a dar corpo a uma paixão que tinha arrastado consigo uma tragédia. Se ela estava livre, a sua alma estava agrilhoada pelos acontecimentos dramáticos. E piores do que as grades de ferro da nossa janela, são as grades que nos aprisionam a alma. Por isso, Carolina comunicou a Rashid que o seu desespero se estava a adensar e a afundá-la num vale de escuridão, pelo que necessitava de espaço e de tempo só para si, para encontrar a sua própria luz.
Com o mesmo olhar quente de sempre, ele implorou-lhe que reconsiderasse, pois juntos iriam conseguir ultrapassar todas as barreiras e aniquilar todos os fantasmas que a fustigavam. Não obstante, ela, irredutível, insistiu que precisava de se encontrar consigo própria. Sem alternativa, ele pediu-lhe que, findo o seu retiro espiritual, o procurasse, pois tinha a certeza de que ela quereria voltar para ele que, garantiu-lhe, esperaria por ela o tempo que fosse preciso.

Carolina partiu, então, para Lisboa, impondo a Rashid que, durante seis meses, não tivessem qualquer contacto, acrescentando que, volvido tal lapso de tempo, entraria em contacto com ele. Entendeu ser esse o tempo necessário para saber se pretendia continuar uma relação que tinha gerado uma tragédia, e viver para todo o sempre junto do homem que, sabia-o de antemão, nunca deixaria de amar.

Apesar de Rashid lhe ter garantido que esperaria por ela o tempo que fosse preciso, estava consciente de que era possível que ele se viesse a sentir cansado de esperar e acabasse por deixar entrar outra mulher na sua vida. Não obstante, ela necessitava urgentemente de se retirar e repensar toda a sua existência nos últimos tempos.

Decorridos seis meses, Carolina que, durante esse tempo, mal aguentara a angústia da separação de Rashid, sentiu irremediavelmente que era vital passar o resto dos seus dias com o homem que, com um simples olhar, a conseguia pôr ao rubro. Percebeu que era urgente voltar para ele, pelo que tomou a decisão de voar de regresso ao Maputo.

Carolina viajou, então, com procedência do aeroporto internacional da Portela, em Lisboa, para o aeroporto internacional de Mavalane, no Maputo.

A voz bem colocada da hospedeira soava cristalinamente nos altifalantes de bordo: “O Comandante João Aguiar de Lemos e a restante tripulação desejam que todos os senhores passageiros tenham tido um excelente voo, esperando voltar a tê-los em breve na nossa companhia, a bordo de um avião da TAP. Aterraremos dentro de alguns instantes no aeroporto internacional de Mavalane, no Maputo. Lembramos que os cintos de segurança deverão permanecer apertados durante a aterragem, e enquanto o respectivo sinal luminoso se mantiver ligado. Desejamos a todos os senhores passageiros umas óptimas férias, ou um bom regresso à capital moçambicana, se for esse o caso.”

E agora? Rashid teria deixado entrar outra mulher na sua vida?

Quando o avião aterrou, e após as formalidades de desembarque, Carolina entrou num táxi que a transportou para o apartamento de Rashid.

Aí chegada, encontrou a casa devoluta. No seu interior, várias funcionárias de uma empresa de limpezas, limpavam, numa azáfama, tectos, paredes, chão, portas, janelas. Foi-lhe explicado que estavam a preparar o apartamento para ser entregue a uma agência imobiliária para revenda. Apercebendo-se do mau presságio que varreu o olhar de Carolina, uma das funcionárias contou-lhe a sangue frio, que o último ocupante da casa tinha falecido uns dias antes, vítima da febre hemorrágica de Marburgo.

Sentindo o chão fugir debaixo dos pés, Carolina dirigiu-se para o Hospital Central do Maputo, onde o Director a informou que Rashid aí tinha estado internado durante uma semana, sempre ciente da doença que o estava a tragar. Contou a Carolina que, na hora da morte, Rashid falara insistentemente numa estrela polar que uns meses antes, verbalizara ele, tinha iluminado o seu caminho, mas que, agora, estava muito, muito, muito longe. Também contou a Carolina que, escassos minutos antes de partir, Rashid lhe tinha dito que tinha a certeza que, quando chegasse ao céu, iria ser recebido com uma valsa de flamingos.

Carolina sentiu um enorme estrondo no interior da sua cabeça, e, de repente, tudo ficou escuro. Foi um apocalipse total. Quando voltou a si, estava deitada numa sala do serviço de observações do Hospital, rodeada por uma equipa de colegas, tendo ficado em vigilância e observação durante 24 horas. Assim que teve alta, dirigiu-se ao “Hotel Vip Maputo”, onde tinha conhecido Rashid.

Chegada junto ao lago onde Rashid em seu dia a conduzira, verificou que já aí não havia flamingos. Vislumbrou, então, no céu, o sorriso sereno de Rashid que, com os dançarinos de plumagem flamejante a valsear em seu redor, lhe acenou demoradamente. Carolina enlevada, sorriu e acenou para o céu. Com os olhos a transbordar de água e de alegria, olhou para duas gémeas sul-africanas de seis anos que estavam junto ao lago, sorrindo e acenando igualmente para o céu. Uma delas perguntou à mãe porque é que os flamingos, no céu, dançavam tão bem. A mãe respondeu-lhe que estavam a fazer uma cerimónia de recepção e boas-vindas ao senhor que estava com eles, que, por ter um espírito cheio de luz, inspirava aquela dança maravilhosa. Carolina, surpresa, sorriu para as gémeas, afagou-lhes o cabelo, e voltou a acenar a Rashid.

Uma certeza deu-lhe alento: Rashid povoaria para todo o sempre os céus de Moçambique, abençoando-a e conduzindo-a pela vida, e lá no alto, esperaria por ela o tempo que fosse necessário, para juntos, viverem um grande e único amor que na terra não lhes foi dado continuarem a viver.