sábado, 23 de julho de 2011

Caríssimos:
Vou estar ausente uns dias.
Quando regressar, visitarei todos e cada um de vós.
Um grande abraço

domingo, 17 de julho de 2011

A POMBA BRANCA DO ROSSIO

                                           



    “Que é morrer senão erguer-se nu ao vento e fundir-se com o sol? Que é deixar de respirar senão libertar o corpo das incessantes marés para poder elevar-se e expandir-se na busca de Deus sem nenhum limite?” - Khalil Gibran, in “O Profeta”, pag. 54.


              Carregava consigo o peso da "maior dor do mundo". Era uma mulher cuja beleza não passava despercebida em parte alguma, mas os seus olhos cor de violeta que, nos tempos da Faculdade, a tinham celebrizado, valendo-lhe o cognome de “Elizabeth Taylor”, tinham perdido todo o brilho. Também a luminosidade que sempre irradiava do seu sorriso, tinha, há muito, deixado de ser uma realidade viva.

               Lera “A filha-sombra” de P.F.Thomése, e revia-se no estado de espírito do autor que tinha perdido a filha: “Tudo está congelado, tão frio e quieto torna-se. Tão frio que afasta todo o sentir. Tão quieto que a respiração congela nos lábios como um ponto de interrogação. Não acontece mais nada, “o momento que irrompe” está para sempre congelado.”

               O filho dela tinha 3 anos de idade, olhos cor de violeta e caracois loiros a emoldurar as bochechas rosadas de querubim. Uma criatura celestial. Talvez por pertencer ao Céu e não à Terra, Deus tinha-o chamado a si, à hora do crepúsculo, num dia de Setembro.

                Ela transformara-se, então, num ser afogado em tristeza.

                Não aguentando a angústia da perda do filho, fôra viver para Lisboa, abandonando Viseu que tantas recordações lhe trazia, pois era aqui que o seu menino despontava em cada esquina e que as suas gargalhadas eram audíveis em cada canto.

                Tinham fluído três longos anos de intensas sessões de psicoterapia, sem que, alguma vez, tivesse conseguido voltar à “Cidade Jardim” que vira nascer o seu menino.

                 Tinha gravada na memória a “Praça da República” de Viseu, vulgarmente designada por “Rossio”, onde tantas vezes tinha estado com seu filho pela mão, a dar milho aos pombos, enquanto ambos se abraçavam numa perfeita fusão de almas e ela lhe dava beijos que depositavam na face rechonchuda dele, todo o amor que enchia o seu coração de mãe.

                  Depois, atravessavam a rua e seguiam pelo passeio que acompanha o mural de azulejos de temática regionalista, que se situa a nascente do “Rossio” e se estende até ao “Jardim das Mães”. Neste jardim, por entre canteiros de buxos, rosas e lírios, seu filho detinha-se a contemplar o “Monumento às Mães” que se ergue no meio do jardim, com o menino a dormir no colo de sua mãe, “o melhor sono da nossa vida em que na nossa alma docemente penetra Deus”, como se lê na inscrição feita na base no monumento. O mesmo sono que o seu menino tantas vezes dormira no seu colo…

                  Agora tinha finalmente arranjado coragem. Voltara a Viseu em homenagem ao filho da terra, porque tinha interiorizado que, ao fugir do lugar onde ambos tinham sido felizes, estava a cristalizar o espírito dele nesse lugar, impedindo-o de usufruir da paz e liberdade eternas de que Deus o considerara merecedor.

                   No “Rossio” tudo permanecia igual a si próprio. Lá estavam o majestático e bem conservado edifício dos Paços do Concelho com o seu pórtico com cantaria, as tílias ancestrais a desafiar o céu, os bancos de jardim com tantas histórias para contar, e os pombos nos beirais, nos peitoris das janelas e nas varandas do edifício.

                    Recordava-se particularmente de uma pomba branca que sempre tinha vindo para junto deles, permanecendo a seus pés e comendo suavemente os grãos de milho nas mãos deles, fitando-os com infinita ternura.

                    Desta feita sozinha, acorreu a dar milho aos pombos, e verificou que a pomba branca veio posicionar-se a seus pés, com a ternura e a graciosidade de outros tempos. Poisara agora gentilmente no ombro dela, fitando-a com uma profunda tristeza no olhar. De mansinho, arrulhou com compaixão ao ouvido dela, afagando a sua alma enlutada de mãe. De seguida, levantou voo e, em jeito de apelo, não deixando nunca de a olhar com enorme  doçura, voou até ao “Jardim das Mães”, onde poisou na mão do menino que dormia no colo de sua mãe. Ela seguiu a pomba branca e entrou no “Jardim das Mães”. A pomba veio pousar de novo no ombro dela. Sentiu-se subitamente acariciada por uma enorme vaga de paz que a mergulhou numa neblina perfumada de tranquilidade espiritual.

                  Foi então que do firmamento se desprendeu uma vigorosa chuva de cometas e uma melodia cantada por pequenos anjos.

                   Compreendeu que o seu menino podia finalmente dormir o sono celestial e viver a paz eterna, porque ela tinha desapertado as amarras que o eternizavam num só lugar. Seu filho era agora um espírito com luz própria, livre de voar para onde as asas de Deus o levassem.



Texto e fotografias ("Jardim das Mães" - "Monumento às Mães", em Viseu) da Isabel Maria.

domingo, 3 de julho de 2011

O BEIJO DE JESUS

            

           Durante a missa na Igreja de Nossa Senhora da Graça, na cidade da Praia - ilha de Santiago - arquipélago de Cabo-Verde, Catarina estava embevecida a ouvir a percussão dos tambores, quando constatou que Jesus era um dos percussionistas. E percutia o tambor com uma serena vitalidade que todos inundava com uma paz celestial. Ela estava em êxtase, a vê-Lo e a ouvi-Lo. E quando Jesus, com o seu olhar divino, tocou a alma dela, ela levantou-se e foi até junto dele, sem nunca deixar de olhar para além dos olhos Dele. Uns olhos cristalinos como a água de uma nascente no paraíso. Do olhar Dele fluíam agora estrelinhas que deixavam deslizar no ar um suave perfume dos céus. Quando ela se abeirou Dele, Jesus sorriu-lhe, ergueu-se e, impondo-lhe as mãos, abençoou-a com o sinal da cruz, após o que lhe ofertou um beijo na testa. Posto isto, segredou-lhe que ela não se devia coibir de dançar se a tal o desejo a impelia, e, voltando a sentar-se, continuou a percutir o tambor. Então, ali, à beira de Jesus, ela entregou o corpo à percussão dos tambores e extravasou freneticamente toda a energia que havia nela, abrindo as comportas das suas mais maravilhosas emoções. Dançou feliz e desinibida como nunca na vida havia dançado. Tamanha vitalidade e alegria só lhe podiam ter sido emprestadas pelo Divino. Jesus sorria feliz ao assistir a todo aquele vigor e a toda aquela libertação. Depois, esvoaçando numa nuvem de lírios brancos, Catarina retomou o seu lugar na assembleia dos fieis.

           Foi, então, que acordou no Hotel Pestana Trópico, onde, naquele mês de Agosto, a cidade da Praia a acolhia, e bem assim ao filho de 12 anos de idade, para uns dias de descanso.

           Recordou-se que, naquele domingo, de manhã, se tinham deslocado ao centro da cidade, que corresponde à Praça Alexandre Albuquerque, à volta da qual se encontram a Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Graça, o Tribunal e a Câmara Municipal, e que tinham ido à missa na Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Graça.

           Pedro, o filho, entrou na igreja contrariado, como sempre. A missa sempre o aborrecera e constituía para ele uma forma acabada de saturação e de perda de tempo.

           Todavia, naquele domingo, a igreja e a celebração da eucaristia viriam a constituír para ele uma agradabilíssima surpresa.

           Desde logo, a igreja tinha janelas e, quer a porta principal ou da fachada, quer as portas laterais, se encontravam abertas, o que permitia não só a entrada da luz do sol, como a circulação do ar. Quase como se se estivesse numa missa campal. Tudo tão diferente das igrejas católicas  portuguesas onde a mãe, ao domingo, o levava à missa, e que eram escuras, sombrias, ao jeito das catacumbas romanas, como se o lugar de recolhimento espiritual e de oração tivesse de ser um lugar mergulhado na penumbra. No interior da igreja, ouvia-se, vinda das frondosas copas das árvores da praça, a alegre chilreada dos passarinhos que, naquela manhã, ali se encontravam, em congregação com os homens, para celebrar o Dia do Senhor. A missa tinha partes cantadas, tal como sucede nas missas católicas do nosso Portugal, mas ali os cânticos desciam dos céus. Havia um coro com vozes ímpares no balcão da igreja, que se situava no piso superior àquele onde estava a assembleia dos fieis. Os elementos do coro cantavam com uma alegria divina, como se todas as estrelas do firmamento, em comunhão de vontades, ali estivessem para iluminar o seu espírito. Junto do coro havia percussionistas que aplicavam batidas em tambores, emprestando à celebração um ritmo de colorido festim. Esta mágica harmonia das vozes com a percussão dos tambores, inundava os fieis com uma paz vinda do céu.

          Para Pedro e Catarina foi muito difícil resistirem à tentação de dançar  freneticamente, acompanhando o ritmo das vozes e dos tambores, pois a alegria contagiante da celebração a tal os impelia. 

          Também a assembleia dos fieis, com as suas vestes domingueiras, cantava com um timbre radioso e com estrelinhas no olhar.

          E uma missa assim, tão cheia de ritmo, de alegria e de paz, convoca todos os mortais, mesmo os renitentes, como Pedro, nada tendo a ver com as missas da Europa que, em alguns casos, se assemelham, pelo seu ar pesado e soturno, a missas de requiem.

          Tanto assim, que, durante a cerimónia, Pedro segredou à mãe:

          - Bué fixe esta missa, mãe! Se as de Portugal fossem assim, nem precisavas de me obrigar a ir à missa. Aqui, a missa é uma festa!

          Sorrindo, a mãe respondeu que certamente o céu estava em festa e que todos os anjos e santos estavam a dançar e a cantar em torno de Deus Pai e da Virgem Maria, e essa festa estava a iluminar Jesus e a sua percussão do tambor.

          E recordou as missas nas quais participara na cidade moçambicana de Nampula, na década de 70. Também aí a igreja era iluminada pela luz do sol que entrava pelas janelas e pelos vitrais, e respirava-se uma alegria contagiante. Ao tempo, os cânticos eram acompanhados à guitarra e cantavam-se letras religiosas com a música “Butterfly”, canção que, nessa década, tanto furor fazia pela voz de Danyel Gerard, e da qual havia versões em alemão, inglês, francês e espanhol. Também em Nampula era um prazer ir à missa.

           Terminada a missa na Igreja de Nossa Senhora da Graça, Catarina e o filho tinham tomado um táxi para o Hotel Pestana Trópico.

           Catarina trazia com ela uma inaudita sensação de paz espiritual e uma alegria transcendental.

          Tinham almoçado no restaurante do hotel – uma Katxupa que se revelara uma iguaria de deuses, e, depois do almoço, Catarina fôra dormir a sesta. Então, tinha tido o privilégio tão único quanto inexcedível e inolvidável, de estar com Jesus na Igreja de Nossa Senhora da Graça. Por isso, o acordar revelava-se, agora, para ela, uma tremenda desilusão, porque, afinal, o beijo de Jesus e a percussão do tambor por este, não tinham passado de um maravilhoso sonho.

          Só que, contrariamente àquilo que Catarina pensou, Jesus tinha, seguramente, estado, de manhã,  na igreja de nossa Senhora da Graça, a percutir tambor e tinha-lhe dado um beijo celestial na testa. E com certeza que ela tinha dançado freneticamente até as pernas lhe desfalecerem, perante o sorriso de divina felicidade de Jesus, enquanto Ele percutia o tambor. Não tinha ela saído da igreja com uma paz de espírito ímpar e uma felicidade que nunca antes havia alcançado, certa de que, em África, há uma alegria mágica na forma como se celebra Deus?

          Ir à missa em África é uma devoção. Surpreendentemente, é nestas terras fustigadas pela fome, pelas doenças e pela falta de condições em geral, que a celebração eucarística ganha uma outra dimensão. À volta de Deus em África há, sem dúvida, uma alegria incomensuravelmente maior do que à volta de Deus na Europa. Em África, há uma outra forma de celebrar Deus. Porque África está imbuída de magia divina!


                     Texto e fotografia (Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Graça - Cidade da Praia - Ilha de Santiago - Cabo Verde) : Isabel Maria.