domingo, 14 de dezembro de 2014

ALMA NOVA VIRADA AO SUL

                                  

 


                       Carolina deixara de poder viajar anualmente para Moçambique, o seu país natal, onde passara a infância.

                       Um acidente de viação arremessara-a, paraplégica, para uma cama.  Com a alma amputada, sentia-se à deriva no mundo,  restricto agora ao seu quarto. Valia-lhe a enorme janela para a qual se encontrava virada.

                       Um dia, na primavera, a janela aberta, Carolina reparou que uma andorinha-dos-beirais que se encontrava pousada no parapeito, a olhava ternamente. Quando lhe sorriu, a andorinha entrou e veio pousar suavemente na mão dela, cantando e acariciando-lhe a pele com a cabecita  e as asas.

                       Desse dia em diante, frequentes passaram a ser as vezes em que, durante o dia, a avezinha a vinha visitar, afagar a sua mão e cantar para ela.  E cada vez que chegava, as estrelas do céu do quarto de Carolina acendiam-se e ela vislumbrava o sorriso de Deus.

                        Não mais consentiu que fechassem a janela.

                       Até que um dia, no outono, a andorinha veio visitar Carolina,  demorando mais a afagá-la, a olhá-la com sumo enleio e a cantar para ela.

                        De seguida, levantou voo,  saíu e foi juntar-se a um bando de andorinhas que, arando os céus, rumaram a sul.

                         A avezinha não mais regressou. As estrelas do céu do quarto de Carolina não se voltaram a acender e ela jamais voltou a vislumbrar o sorriso de Deus.

                          Morreu-lhe a alma.

                          Pediu, então, que fechassem a janela e não mais a voltassem a abrir.

                           Os dias e as noites sucederam-se envoltos num permanente negrume, até que, na primavera seguinte, Carolina ouviu um ruído vindo da janela. Olhou e viu a andorinha no parapeito, batendo na vidraça com o bico.

                            Reacenderam-se as estrelas do céu do quarto de Carolina. O sorriso de Deus voltou a brilhar. Pediu, então, que abrissem a janela de par em par.

                            Mal abriram a janela, a avezinha correu para ela, olhando-a com sumo enleio, acariciando-lhe a pele com a cabecita e as asas e deliciando-a com o seu canto.

                         Os olhos continham as cores das goiabas e das papaias de Moçambique. Na plumagem era notória a cor azul violeta dos jacarandás e a cor rubra das acácias. O bico aninhava o perfume do suco das mangas. As patitas abrigavam o cheiro da terra em brasa fecundada pelas chuvas de Dezembro em Moçambique.

                           A colcha da cama de Carolina ficou com as cores das goiabas e das papaias e impregnada com o perfume do suco das mangas e com o cheiro da terra molhada de Moçambique.

                          Nasceu uma nova alma a Carolina, agora inundada pelas  correntes quentes do canal de Moçambique.

                           E todos os dias a andorinha visitava Carolina várias vezes e vinha passear na mão dela, acariciando-lhe a pele com a cabecita e as asas,  e olhando-a com sumo enleio, enquanto cantava para ela.

                           No outono seguinte, Carolina desceu à terra.

                           A andorinha, num pranto, foi prostrar-se na campa.

                           Do chão desprendeu-se, então, uma nuvem cintilante que aninhava uma sorridente Carolina no seu regaço. Radiante, a andorinha correu a pousar na mão dela, olhando-a com sumo enleio, enquanto lhe acariciava a pele com a cabecita e as asas, e a deliciava com o seu canto.

                          A nuvem cintilante esfumou-se, ao mesmo tempo que   Carolina, bailando, se elevou no ar.

                           Carolina e a andorinha rumaram a sul, guiadas por uma estrela que, no firmamento, brilhava mais intensamente do que todas as outras: a estrela de Moçambique.                

                                                                                                                       
                             

                          Texto e imagem da Isabel Maria, com um abraço do tamanho de África para a Graça Machado, a minha Querida Zambeziana, que me animou a voltar depois de uma ausência prolongada, que se ficou a dever exclusivamente aos muitos afazeres que tenho em mãos.