Carolina deixara de poder
viajar anualmente para Moçambique, o seu país natal, onde passara a infância.
Um acidente de viação
arremessara-a, paraplégica, para uma cama.
Com a alma amputada, sentia-se à deriva no mundo, restricto agora ao seu quarto. Valia-lhe a
enorme janela para a qual se encontrava virada.
Um dia, na primavera, a
janela aberta, Carolina reparou que uma andorinha-dos-beirais que se encontrava
pousada no parapeito, a olhava ternamente. Quando lhe sorriu, a andorinha
entrou e veio pousar suavemente na mão dela, cantando e acariciando-lhe a pele
com a cabecita e as asas.
Desse dia em diante,
frequentes passaram a ser as vezes em que, durante o dia, a avezinha a vinha
visitar, afagar a sua mão e cantar para ela.
E cada vez que chegava, as estrelas do céu do quarto de Carolina
acendiam-se e ela vislumbrava o sorriso de Deus.
Não mais consentiu que
fechassem a janela.
Até que um dia, no
outono, a andorinha veio visitar Carolina,
demorando mais a afagá-la, a olhá-la com sumo enleio e a cantar para
ela.
De seguida, levantou
voo, saíu e foi juntar-se a um bando de
andorinhas que, arando os céus, rumaram a sul.
A avezinha não mais
regressou. As estrelas do céu do quarto de Carolina não se voltaram a acender e
ela jamais voltou a vislumbrar o sorriso de Deus.
Morreu-lhe a alma.
Pediu, então, que fechassem
a janela e não mais a voltassem a abrir.
Os dias e as noites
sucederam-se envoltos num permanente negrume, até que, na primavera seguinte,
Carolina ouviu um ruído vindo da janela. Olhou e viu a andorinha no parapeito,
batendo na vidraça com o bico.
Reacenderam-se as estrelas
do céu do quarto de Carolina. O sorriso de Deus voltou a brilhar. Pediu, então,
que abrissem a janela de par em par.
Mal abriram a janela, a
avezinha correu para ela, olhando-a com sumo enleio, acariciando-lhe a pele com
a cabecita e as asas e deliciando-a com o seu canto.
Os olhos continham as
cores das goiabas e das papaias de Moçambique. Na plumagem era notória a cor
azul violeta dos jacarandás e a cor rubra das acácias. O bico aninhava o
perfume do suco das mangas. As patitas abrigavam o cheiro da terra em brasa
fecundada pelas chuvas de Dezembro em Moçambique.
A colcha da cama de
Carolina ficou com as cores das goiabas e das papaias e impregnada com o
perfume do suco das mangas e com o cheiro da terra molhada de Moçambique.
Nasceu
uma nova alma a Carolina, agora inundada pelas
correntes quentes do canal de Moçambique.
E todos os dias a
andorinha visitava Carolina várias vezes e vinha passear na mão dela,
acariciando-lhe a pele com a cabecita e as asas, e olhando-a com sumo enleio, enquanto cantava
para ela.
No outono seguinte,
Carolina desceu à terra.
A andorinha, num pranto,
foi prostrar-se na campa.
Do chão desprendeu-se,
então, uma nuvem cintilante que aninhava uma sorridente Carolina no seu regaço.
Radiante, a andorinha correu a pousar na mão dela, olhando-a com sumo enleio,
enquanto lhe acariciava a pele com a cabecita e as asas, e a deliciava com o
seu canto.
A nuvem cintilante esfumou-se, ao mesmo
tempo que Carolina, bailando, se elevou
no ar.
Carolina e a andorinha
rumaram a sul, guiadas por uma estrela que, no firmamento, brilhava mais
intensamente do que todas as outras: a estrela de Moçambique.
Texto e imagem da
Isabel Maria, com um abraço do tamanho de África para a Graça Machado, a minha
Querida Zambeziana, que me animou a voltar depois de uma ausência prolongada,
que se ficou a dever exclusivamente aos muitos afazeres que tenho em mãos.