domingo, 19 de dezembro de 2010

Mãe... São três letras apenas
As desse nome bendito:
Também o Céu tem três letras...
E nelas cabe o infinito.
Para louvar nossa mãe,
Todo o bem que se disse
Nunca há de ser tão grande
Como o bem que ela nos quer...
Palavra tão pequenina,
Bem sabem os lábios meus
Que és do tamanho do Céu
E apenas menor que Deus!

(“Mãe” – Mário Quintana.)



"Magoaste-te, meu filho?"

Naquela tarde, estava eu sentada na esplanada da pastelaria, a saborear um duchesse e a deliciar-me com uma chávena de chocolate quente, quando vi passar Francisquinha.
Com o seu passo ligeiro, dirigia-se, como acontecia diariamente, para o estabelecimento prisional da cidade, onde seu filho cumpria pena de prisão por homicídio qualificado na forma tentada da própria mãe.
Era uma mulher marcada a ferro e fogo pela vida madrasta, mas, nem por isso, o sorriso que lhe emoldurava o rosto, se extinguia alguma vez. Tinha um sorriso triste, é certo, mas nunca deixava de sorrir com uma pureza e uma serenidade inigualáveis. Dir-se-ia um sorriso angelical.
Oriunda de uma família de escassos recursos económicos, vira sua mãe, uma bonita alternadeira, já cansada dos maus-tratos físicos e psicológicos que o companheiro e pai de sua filha lhe infligia, abandonar o lar quando ela tinha tão somente dois anos de idade. Francisquinha fôra, então, deixada em casa com o pai, alcoólico inveterado, que passava os dias a deambular pela cidade, sem qualquer modo de vida.
Logo no próprio dia do abandono do lar por parte da mãe de Francisquinha, uma vizinha, alertada pelo choro insistente da criança dentro de casa, solicitou a comparência da Guarda Nacional Republicana que, após proceder ao arrombamento da porta da casa, viria a constatar que Francisquinha ali se encontrava sozinha há bastantes horas, no interior do “parque” para bebés, entregue à sua sorte, enquanto o pai, completamente embriagado, percorria as tascas da cidade. Contactada de imediato a Segurança Social e, através desta, o Tribunal de Família e Menores, Francisquinha foi, ainda nesse dia, provisoriamente institucionalizada.
O pai nunca a visitou, assim como jamais procurou, por qualquer forma, inteirar-se do seu estado.
Do paradeiro da mãe não mais alguém viria a saber.
Em breve, o Tribunal decretaria a inibição do exercício do poder paternal de ambos os progenitores de Francisquinha e a entrega definitiva desta à instituição que a acolhera.
Volvidos uns anos, o pai acabaria por ser morto numa rixa de ciganos, numa casa de alterne da cidade.
Quando atingiu os 18 anos de idade, Francisquinha deixou de estudar e saíu da instituição, para casar com um homem 10 anos mais velho do que ela, que, em breve, deixaria de representar o papel de respeitável cidadão, para passar a andar permanentemente etilizado, acabando por abandonar definitivamente o local de trabalho e começando a infligir, de forma reiterada, maus-tratos físicos e psíquicos a Francisquinha.
Ao fim de dois anos de casamento, ele morreu com uma cirrose hepática, e Francisquinha, com um filho de seis meses nos braços, ficou timoneira única do barco, seriamente empenhada em jamais permitir que este naufragasse.
Funcionária administrativa na secretaria de uma escola secundária, e confeccionando, à noite e nos fins-de-semana, bolos e doces para fora, conseguiu, à custa de muito trabalho e contenção nas despesas, uma vida com as finanças equilibradas.
Quando seu filho tinha 17 anos de idade, Francisquinha começou a aparecer, a toda a hora, com equimoses e hematomas. Toda a cidade comentava que o filho lhe batia ferozmente, tornando a vida dela uma via crucis. Inicialmente, quando alguém a questionava sobre a origem dessas lesões corporais visíveis, Francisquinha respondia, invariavelmente, que tinha caído nas escadas interiores de sua casa e comentava, logo de seguida, que a casa era antiga e tinha uma escadaria com degraus de pedra demasiado altos. Mais tarde, as pessoas já nem lhe perguntavam nada, para não a deixarem constrangida e sufocada pela necessidade de lhes mentir.
Quando o filho perdeu a última réstia de vergonha e, por entre as chamas do inferno dos produtos estupefacientes que consumia, a começou a maltratar física e psiquicamente na via pública, a comunidade teve, finalmente, a certeza de que as lesões corporais que Francisquinha apresentava, não resultavam de qualquer queda nas escadas, sendo antes consequência directa e necessária do peso da cruz que ela carregava.
Aos 18 anos de idade, seu filho foi condenado por assalto à mão-armada a uma agência bancária de uma vila vizinha, na pena de 7 anos de prisão. Todos os dias, à tarde, Francisquinha o visitava no estabelecimento prisional. Por vezes, transportava consigo pequenas doses de heroína para consumo pessoal do filho, que fazia entrar no estabelecimento prisional na copa do soutien ou no interior das cuecas, e que, à socapa, passava ao filho. Fazia-o numa tentativa desesperada de acalmar as fúrias dele que, no auge do síndrome de abstinência da droga, a ameaçava de morte quando saísse da prisão, se ela não lhe levasse o produto estupefaciente. “Deixa-me sair daqui, e hás-de aparecer esventrada que nem uma cadela, numa valeta à beira do cemitério, se amanhã não me trouxeres aquilo que sabes que quero!”, explodia ele.
Para aquisição das doses, Francisquinha infiltrava-se, pela calada da noite, no bairro dos marginais da cidade, onde comprava o produto estupefaciente aos dealers que abasteciam seu filho quando em liberdade.
Quando o filho saíu em liberdade condicional, Francisquinha voltou a aparecer, constantemente, com equimoses e hematomas, o que aconteceu até ao dia em que, depois de o filho lhe ter pedido dinheiro para mais uma dose de heroína e ela lhe ter respondido que não tinha nem mais um centavo, e que já não aguentava passar mais fome para lhe dar dinheiro para a droga, o filho lhe desferiu três violentas facadas no ventre. Sujeito ao 1º interrogatório judicial de arguido detido, veria decretada a sua prisão preventiva. Acusado pelo Ministério Público da prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada de sua própria mãe, viria a ser submetido a julgamento e condenado na pena de 12 anos de prisão. Francisquinha, durante o Julgamento, na qualidade de mãe do arguido, usara da prerrogativa legal de se remeter ao silêncio, “para não prejudicar o meu menino”, como ela se justificaria mais tarde.
Os médicos nunca conseguiram explicar como é que Francisquinha se salvou, pois sempre tinham considerado inevitável a sua morte, devido à região corporal visada e atingida e à natureza, extensão e profundidade das lesões provocadas. Falavam em “milagre” e o pároco da igreja onde Francisquinha ia à missa todos os domingos, asseverava que Deus a tinha salvo por ela só fazer o bem na terra e, como tal, a sua presença aqui ser imprescindível. Na altura, valera a Francisquinha um vizinho que, alertado pelos seus gritos, acorrera a prestar auxílio.
Desde que o filho ingressara de novo na prisão, Francisquinha deixara de apresentar equimoses e hematomas, e continuava, tal como aquando da primeira reclusão dele, a ir visitá-lo todas as tardes.
O que fazia correr Francisquinha? Que estranha força da natureza é essa, que faz com que uma mãe continue a dar a vida pelo filho que tentou tirar-lhe a sua própria vida?
Enquanto olhava para Francisquinha e saboreava o meu duchaisse e o meu chocolate quente, lembrei-me de uma lenda que minha mãe me contara um dia, e que perpetuei na memória: Um filho, para mostrar a sua lealdade a uma seita e aí obter aceitação, matou a própria mãe e arrancou-lhe o coração para o levar ao bando de assassinos, como prova do homicídio vindo de perpetrar. Introduziu, então, o coração numa caixinha, fechou-a, tomou-a nas suas mãos e desatou a correr para chegar depressa junto da associação criminosa e apresentar a almejada prova que o iria consagrar no seu seio. No caminho, porém, tropeçou e caíu aparatosamente. A caixinha desprendeu-se das suas mãos e caíu, também ela, por terra. Foi, então, que do interior da caixinha, soou uma voz miudinha, cheia de ternura: “Magoaste-te, meu filho?”
Esta lenda, que demonstra que o amor de mãe não conhece limites, tem, pela sua riqueza, sido contada de geração em geração, atravessando o pó dos tempos, tendo, assim, chegado aos nossos dias.
Voltei a olhar para Francisquinha e vi-a, com o seu passo ligeiro, a aproximar-se do estabelecimento prisional. De repente, um homem encorpado aproximou-se dela e, com o olhar desvairado, ordenou-lhe que lhe desse dinheiro. Quando ela lhe respondeu que já não tinha mais dinheiro consigo, ele empurrou-a violentamente, o que fez com que ela perdesse o equilíbrio e caísse desamparada no chão. Acto contínuo, o homem, com chispas de ódio a turvar-lhe o olhar, retirou do bolso interior do blusão, uma faca com uma lâmina refulgente e afiada, que espetou violentamente, por três vezes, no abdómen de Francisquinha. Vi-a contorcer-se num esgar de dor dilacerante e ser violentamente sacudida por um sem número de espasmos agónicos, enquanto se afundava numa poça de sangue. O homem encorpado voltou a meter a faca ensanguentada no bolso interior do blusão, e saíu dali a correr. Ao fugir, tropeçou numa pedra e estatelou-se no chão. Foi, então, que ouvi a voz miúdinha e cheia de amor maternal de Francisquinha, perguntar-lhe: “Magoaste-te, meu filho?”
Logo a seguir, Francisquinha ergueu-se e, sempre com o seu passo ágil, transpôs o portão do estabelecimento prisional. O portão fechou-se e Francisquinha desapareceu para lá das grades de ferro forjado do portão.
Voltei a ouvir as palavras de minha mãe, uma senhora vergada pelo peso dos seus 80 anos cheios de cultura e de saber de experiência feito (se soubesses, mamã, como, mesmo velhinha e vergada, te acho a mais linda de todas as mulheres!), que, a propósito da capacidade de sofrimento das mães que são vítimas de maus tratos dos filhos e que continuam a amá-los incondicionalmente, me perguntou um dia: “Já reparaste que os filhos, quando ainda se encontram dentro de nós, já nos dão pontapés? Não obstante, cada vez os amamos mais. Logo nessa altura, aprendemos a suportar com resignação os outros pontapés que eles depois nos hão-de dar pela vida fora, e nunca deixamos de os amar sem limites, porque eles são carne da nossa carne e é o nosso coração que bate no coração deles.“
Constava-se, havia já algum tempo, que Francisquinha tinha um namorado e que este a mimava como nunca ninguém a tinha mimado. Naquele dia, depois da visita ao filho, um senhor esperava-a ao volante de um veículo automóvel ligeiro de passageiros de alta gama, à porta do estabelecimento prisional. Quando o viu, os olhos dela brilharam. Sorriu como sempre sorria, mas, pela primeira vez, o seu sorriso não era triste. O homem apeou-se, veio ao encontro dela, beijou-lhe ambas as faces e abriu-lhe a porta do carro, no qual Francisquinha entrou como uma princesa. Depois, o senhor voltou a fechar a porta da viatura, contornou esta por trás, entrou novamente no carro, sentou-se ao volante e reiniciou a marcha do automóvel.
Senti uma felicidade inaudita tomar conta de mim. Pela primeira vez, a cidade viu um sorriso feliz no rosto de Francisquinha.
O céu estava azul e o sol abençoava a cidade. Junto da esplanada, os pássaros, nas copas frondosas das árvores, entoavam uma chilreada primaveril, um hino à felicidade de Francisquinha.
Isto aconteceu há dez anos. Entretanto, fui viver para New York com toda a minha família, mas, através de uma amiga, continuei a acompanhar os acontecimentos mais marcantes da vida da cidade de Francisquinha. Soube que, depois de ter cumprido pena pelo crime de homicídio na forma tentada de sua mãe, o filho de Francisquinha viria a ser novamente preso, desta feita para cumprimento da pena de sete anos de prisão efectiva pela prática do crime de abuso sexual de criança. Também me foi transmitido que Francisquinha continuava a visitar diariamente o filho na prisão e a dar-lhe todo o seu amor de mãe, mas que, agora, vivia momentos de rara felicidade ao lado do homem que a amava e que a protegia da truculência do filho, e que era precisamente o homem que, havia 10 anos, eu tinha visto ir buscá-la ao estabelecimento profissional.
Este ano, durante as minhas férias de verão, em Santo Domingo, vi Francisquinha de braço dado com esse homem. Passou por mim a sorrir para ele enquanto ele falava para ela e lhe sorria também. Francisquinha tinha engordado uns quilos, estava elegantemente vestida, e resplandecia uma serenidade feliz. Apesar das rugas no rosto, e do cabelo quase todo branco, os olhos e a pele dela tinham um outro brilho. Tive a certeza que Francisquinha era amada, o que me aconchegou a alma.
Lembro-me que me virei para trás, parei no passeio e fiquei, deslumbrada, a seguir o passo, agora já não tão ágil, mas determinado, de Francisquinha, até ela desaparecer por entre a multidão.
Muito obrigada, Meu Deus, por teres permitido que Francisquinha conhecesse o rosto da felicidade!


Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa

1 comentário:

  1. São histórias de vida, interessantes e com as quais podemos sempre aprender algo.
    Gostei muito
    Obrigada pela visita ao meu blogue e pelo simpático comentário.
    Bjs

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