sábado, 11 de dezembro de 2010

"Pequenos anjos de Txon Bon"

Naquela tarde do pretérito mês de Agosto, a milhares de quilómetros de Portugal, um sol abrasador fustigava a pequena aldeia de Chão Bom, situada no município do Tarrafal, na parte norte da ilha de Santiago do arquipélago de Cabo Verde, quando chegámos ao antigo campo de concentração, que passou à história com a designação de “campo da morte lenta”.
Este espaço com 200 metros de comprimento por 150 metros de largura, situado a 3 Km da vila do Tarrafal, numa planície limitada a poente pelo Oceano Atlântico, e a norte, a sul e a nascente por uma cadeia montanhosa, foi inspirado nos campos de concentração da Alemanha de Hitler, que, depois, alastraram, como campos de extermínio, a todos os territórios ocupados pelo exército nazi.
A colónia penal do Tarrafal, criada pelo Decreto-Lei nº 26.539, de 23/04/1936, destinava-se, de harmonia com o disposto no seu artigo 2º, corpo e parágrafos 1º e 2º, a presos por crimes políticos que devessem cumprir pena de desterro, ou que, tendo estado internados noutro estabelecimento prisional, se tivessem mostrado refractários à disciplina desse estabelecimento, ou se tivessem revelado elementos perniciosos para os outros reclusos, podendo igualmente ser internados nesta colónia penal, em secção separada, os condenados em penas maiores por crimes praticados com fins políticos, crimes estes sujeitos por lei ao regime prisional comum, e ainda, em caso de necessidade, os presos preventivos por crimes políticos e que o Governo decidisse que deveriam aguardar o julgamento, ou mesmo ser submetidos a julgamento, fora da metrópole.
Antes de eu, o meu marido e os nossos filhos nos apearmos, o taxista que nos transportara desde a Cidade da Praia, e que servia de guia - o Guilherme, um crioulo finalista do curso de Ciências Sociais na Universidade de Cabo Verde, observou peremptório:
- O verdadeiro escopo da “Colónia Penal do Tarrafal”, inaugurada em 29/10/1936, era a eliminação física dos prisioneiros. Prova disso é o facto de o seu primeiro director – Capitão Manuel Martins dos Reis, ter feito questão de anunciar aos prisioneiros que “Quem vem para o Tarrafal, vem para morrer!”. E também esta tese é fortemente alicerçada pelo facto de o primeiro médico do campo de concentração - Esmeraldo Pais de Prata, aqui chegado em Fevereiro de 1937, ter advertido os presos que não estava aqui para curar doentes, mas para “passar certidões de óbito.” (Sic.)
Assim que nos apeámos, pequenos anjos com a pele da cor do chocolate e com a alma branca, rodearam-nos com as mãozitas estendidas, pedindo moedas. Quando as receberam, o brilho que irradiou dos seus olhos, ofuscou os pássaros e flores de Cabo-Verde que, gravados nas moedas, refulgiam sob o sol escaldante daquela tarde.
Preparámo-nos, então, para, na companhia de Guilherme, darmos início à visita do que restava da antiga “Colónia Penal do Tarrafal”, situada num lugar outrora pantanoso e tão isolado quanto inóspito e insalubre, com clima adverso aos europeus.
Guilherme prosseguiu:
- Nos primeiros tempos do funcionamento do campo, quando os presos dormiam em tendas de lona, os mosquitos anófeles, quais verdugos com pés de lã, dançavam a valsa da morte nos pântanos e na água contaminada que abastecia o campo, e que provinha do Poço do Chambão, situado a 700 metros. Esta água continha excrementos de cabras e de burros lazarentos que junto dela paravam para matar a sede. Também as enxurradas que, na estação das monções, provocavam o desabamento das encostas das montanhas, arrastavam consigo burros, cães e aves mortas. Tudo isto a inquinar totalmente a água que os presos consumiam. A piorar o cenário, a infiltração das águas do Atlântico, a 200 metros do campo, nos terrenos por onde corria a água do poço, tornava esta salobra. Inicialmente, não era permitido ferver a água e não havia mosquiteiros, o que escancarava as portas, sobretudo na estação das chuvas, à malária ou paludismo, doença para a qual não havia aqui assistência médica ou medicamentosa eficaz.
Guilherme falava paulatinamente, talvez para nos dar tempo para digerirmos a crueldade da realidade que ele nos estava a transmitir. Após uma breve pausa, continuou:
- Havia ainda os espancamentos, os trabalhos forçados, como, por exemplo, cavar pedra de sol a sol e carregá-la aos ombros, a falta de água, a má qualidade da alimentação e a tristemente célebre “frigideira”, em cujo interior a temperatura chegava a ultrapassar os 50ºC, e onde muitos prisioneiros passavam semanas. No Tarrafal de hoje, não há vestígios da “frigideira”, existindo, tão somente, antes de entrarmos no campo propriamente dito, neste pavilhão situado do nosso lado esquerdo, uma maquete do mencionado “instrumento de tortura”, com um texto alusivo ao mesmo.
Entrámos nesse pavilhão e verifiquei que a “frigideira” consistia numa construção em forma de paralelipípedo, com paredes, tecto e chão em cimento, completamente fechada, com cinco a seis metros de comprimento e três metros de largura. No interior, este bloco de cimento estava dividido ao meio por uma parede, que separava duas celas. Cada uma destas celas, com cerca de 2,5 metros de altura, tinha uma porta de ferro com seis orifícios, cujo diâmetro era inferior a um centímetro, e através dos quais se fazia uma simulação de oxigenação. Por cima das portas, junto ao tecto, havia uma pequena fresta gradeada. O arejamento de cada cela só se fazia quando a porta da mesma se abria durante um curtíssimo espaço de tempo, o que acontecia apenas uma vez de manhã e outra à tarde, no momento da entrega da refeição, composta por pão seco e água ou por pão seco e um caldo com alguns bagos de arroz. Esta caixa de cimento estava, durante todo o dia, sob a acção do sol tropical, já que havia sido propositadamente construída num local do campo sem qualquer possibilidade de sombra.
Guilherme complementou a informação que tínhamos acabado de colher no texto:
- Em cada cela da “frigideira” chegavam a estar doze homens, quando a mesma só tinha capacidade para um, o que agravava a sensação de semi-asfixia dos prisioneiros, sendo a negritude deste quadro adensada pelos ácidos pútridos do latão dos dejectos humanos de que todos se serviam durante semanas.
- Meu Deus, Guilherme! - suspirei eu com o coração esmagado, enquanto abandonávamos o pavilhão. - Como é possível ter existido a “frigideira”?...
- Eu sei que até parece mentira, mas, infelizmente, foi pura realidade.
Quando entrámos no antigo campo de concentração, Guilherme convocou a nossa atenção para o fosso com 4 metros de largura e 3 metros de profundidade a toda a volta do campo, encimado por um talude com guaritas instaladas nos quatro cantos e com 2 filas de arame farpado.
- Mercê da existência deste fosso - prosseguiu ele -, dos carcereiros, das sentinelas com armas de fogo que vigiavam o campo, e do Oceano Atlântico aqui tão perto, estava garantida a impossibilidade de fuga de todo e qualquer prisioneiro.
Percorremos o que hoje resta do Tarrafal e que é monumento nacional cabo-verdiano – as celas, a zona das latrinas, a lavandaria, a cozinha, o posto de socorro e a casa mortuária, cujas estruturas se mantêm de pé, em avançado estado de degradação.
Saí vergada pelo peso da memória agónica deste campo, sentindo que todo o horror que tinha sido uma realidade viva no Tarrafal, se estava a abater sobre mim, minando-me a alma. Lendo o meu coração, o meu marido colocou a mão sobre o meu ombro e disse-me:
- Por vezes, a herança histórica dos povos contem factos tão negros, que as gerações vindouras têm dificuldade em carregar nos ombros o peso dessa herança, mas é bom que se conheça a realidade profunda do Tarrafal, para que nunca mais exista um lugar assim.
À saída, todos os pequenos anjos de Chão Bom (Txon Bon em crioulo cabo-verdiano), estavam ali a pedir-nos moedas, porque, certamente, já tinha corrido a notícia de que tinham chegado uns brancos ao campo do Tarrafal.
Distribuímos as moedas que nos restavam.
Recordo-me, com particular angústia, de uma mãe que me pediu dinheiro para o seu bebé de 3 meses que trazia ao colo. Já não tínhamos connosco escudos cabo-verdianos, mas dei-lhe a única nota que trazia comigo: € 25,00. Volvidos alguns instantes, uma outra mãe surgiu ao pé de mim, com um menino pequenino pela mão e suplicou, com a pureza espelhada no olhar: “Dá também p´ró meu bebé…” Já não tinha mais dinheiro comigo e o meu marido já só tinha com ele o dinheiro necessário para pagar o táxi. Comuniquei, então, àquela mãe, que não tinha mais dinheiro, mas dizer-lhe isso, dilacerou a minha alma de mãe.
Logo de seguida, os pequenos anjos com a pele da cor do chocolate e com a alma branca, continuaram a pedir-nos moedas e eu tive de dizer a verdade: Não tínhamos mais nenhuma moeda. E a minha dor dilacerante a aumentar. Os pequenos anjos acompanharam-nos até ao carro, mas não nos voltaram a pedir moedas. Quais lordes ingleses, com a sua infinita doçura e do alto da resignação com que enfrentam as adversidades e as agruras da vida, abriram a porta traseira direita do táxi para eu e os meus filhos entrarmos para o banco de trás, e, depois de termos entrado, fecharam suavemente a porta. Quando Guilherme, com o meu marido ao lado, iniciou a marcha da viatura, fiquei a olhar para os pequenos anjos através do vidro, e a ser engolida pela angústia de já não ter moedas para lhes dar. E a resignação deles a apunhalar-me no peito, a doçura deles a fazer-se ferida em carne viva na minha alma.
Um pedaço do meu coração ficou ali, em Txon Bon, com aquela mãe para cujo pequeno anjo não dei dinheiro, e outro pedaço ficou com todos aqueles anjos pequeninos a quem não dei mais uma moeda.
Brevemente, quero regressar a Txon Bon para dar uma nota àquela mãe que me pediu dinheiro para o seu pequeno anjo, e para abrir uma porta a cada um daqueles pequenos anjos que vieram acompanhar-nos ao carro e, tão gentilmente, nos abriram a porta.
Senhor, abençoai sempre todos aqueles pequenos anjos, porque deles é o reino dos céus. Permiti que as mães deles jamais deixem de lutar pelo bem-estar dos filhos. Fazei com que nunca mais uma mente humana volte a projectar um lugar como o campo de concentração do Tarrafal. E perdoai-me, Senhor, por, naquela tarde, em Txon Bon, não ter mais dinheiro comigo.

4 comentários:

  1. ... não percebi se o livro (?) é de seu autoria! Mas suponho que sim!
    Uma escrita muito interessante!

    Quando se fala da 'luz de África'... penso em Karen Blixen! E no livro que Sydney Pollack imortalizou em imagem!

    Parabéns sinceros!

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  2. Os textos que publiquei neste blog estão inseridos em dois pequenos livros de ficções da minha autoria: "A chuva dançou com ela" e "Pequenos anjos de Txon Bon". Em cada um deles existe um texto aqui publicado, que dá o nome ao livro.
    Luz de África é o nome que escolhi para o blog.
    Bem haja pelas suas palavras, que são um afago perfumado e constituem um alento para que faça cada vez mais e melhor.
    Sou "caloira" nestas lides, mas serei uma visitante assídua do seu blog, que me agradou desde a primeira hora.

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  3. Caríssima Fragmentos Culturais: O anterior comentário era a resposta ao seu comentário.

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