sábado, 11 de dezembro de 2010

“Quando uma porta de felicidade se fecha, uma outra abre-se; mas muitas vezes, olhamos tão demoradamente para a porta fechada, que não podemos ver aquela que se abriu diante de nós.” – Helen Keller.


"Quando uma porta se abre"

Naquele final de tarde, com a angústia a dilacerar-lhe o coração, encontrava-se em frente do antigo “Liceu Salazar”, hoje “Escola Josina Machel”, no Maputo, estabelecimento de ensino que frequentara anos antes, quando a cidade ainda era conhecida pela designação de Lourenço Marques.
A sua cabeça recuou no tempo. O toque de entrada soava agora por entre a algazarra dos alunos que, às 07h 30m, enchiam o pátio, indiferentes ao calor abrasador que, àquela hora, já se fazia sentir. Aí vinha ela a correr, com procedência da paragem de autocarro. E lá estava ele, impávido e sereno, junto ao portão, alheio ao toque da campainha, à espera dela, só com olhos para a sua menina. Quando ela chegava, o sol brilhava com maior intensidade e as suas almas entrelaçavam-se num abraço eterno.
Tinham-se perdido loucamente de amores um pelo outro, mas esta paixão jamais viria a ser aceite, quer pela família dela, quer pela família dele, pela simples razão de que a pele dele da cor da canela contrastava vivamente com a pele branca dela.
A guerra de libertação e a luta de guerrilha contra o Exército Português – a designada “Luta Armada de Libertação Nacional”, terminou com os Acordos de Lusaka, assinados em 7 de Setembro de 1974, entre o Governo Português e a FRELIMO, na sequência da “Revolução dos Cravos”, e em 25 de Junho de 1975, Moçambique tornou-se uma república independente.
Tinham eles, então, 16 anos de idade e estavam no último ano do Liceu. Ela, filha de um oficial da Força Aérea Portuguesa, em comissão de serviço em Lourenço Marques, deixou Moçambique para regressar a Lisboa com os pais. Ele, pelo contrário, permaneceu na capital moçambicana com os pais - um casal de advogados especializados no ramo do Direito Administrativo.
A separação dos dois jovens foi um suplício sem direito a despedida no aeroporto, porque a sua relação tinha de sofrer o oceano de horrores das relações clandestinas.
Despediram-se um dia, ao entardecer, num vale de lágrimas, com juras de amor eterno e a promessa de que, assim que um deles tivesse a sua independência económica, viajaria ao encontro do outro para, finalmente, casarem, certos de que o fariam contra tudo e contra todos.
Passaram a corresponder-se por carta, dizendo ela a seus pais que as cartas que recebia e que, no remetente, tinham escrito o nome de Catarina Andrade, eram de uma antiga colega e amiga do Liceu, que tinha ficado no Maputo, e transmitindo ele a seus pais que as cartas que recebia e que, no remetente, tinham aposto o nome de João Lemos, eram provenientes de um antigo colega e amigo do Liceu, que regressara a Portugal.
Os anos foram fluindo. Ela estava agora no último ano de Direito em Lisboa e ele cursava Medicina em Joanesburgo. A “Associação de Finalistas” da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa programou a viagem de finalistas desse ano, ao Maputo. Apesar de ainda não ter a sua independência económica, ela podia agora ir ao encontro dele, pois os pais dela custeavam a viagem. Sabiam que ela tinha deixado amigos na capital moçambicana e estavam convencidos que a paixão da filha por aquele rapaz tinha sido um desvario de outros tempos e que ela, felizmente, tinha ganho juízo e deixado, há muito, de pensar nele.
Ela sentia-se feliz, porque tinha, agora, finalmente, oportunidade de viajar ao encontro do seu amor antigo.
Assim, naquelas férias de Páscoa, ela chegou com um grupo de colegas finalistas, ao Maputo, a cidade onde ele, segundo lhe contara por carta, iria estar durante as férias.
Sobre a sua viagem de finalistas, ela nunca lhe tinha contado nada para a surpresa ser total.
Quando chegou ao Maputo, tinha no aeroporto, a esperá-la, uma velha amiga, a quem, na véspera, e no maior sigilo, anunciara a sua chegada, mas a quem jamais tinha contado que o seu relacionamento com o jovem negro prosseguia.
Assim que se abraçaram, ela confidenciou à amiga que ia fazer uma surpresa à sua paixão de sempre. A amiga, com a tristeza a tomar-lhe conta do olhar, disse-lhe que ela tinha de ser forte, porque o que tinha para lhe contar, iria magoá-la profundamente. Ele estava de casamento marcado com uma sul-africana, colega da Universidade de Joanesburgo, que esperava um bebé dele e, após o casamento, ambos partiriam em lua-de-mel para Casablanca, prosseguindo depois, os seus estudos em Joanesburgo.
O mundo dela ruíu. Sentiu-se traída, ultrajada, vilipendiada. Incrédula, balbuciou que ainda na semana passada, recebera dele uma carta com juras de amor eterno. Decidiu que só acreditaria nessa afronta se fosse ele próprio a contar-lhe. Por isso, telefonou-lhe e perguntou-lhe se era verdade. O silêncio sepulcral que se seguiu à pergunta dela, foi uma resposta mais do que elucidativa. Como pudera ser tão ingénua, achando que, durante todos estes anos, ele tinha estado à espera dela?
Quisera fazer uma grande surpresa ao seu amor de sempre e, afinal, a grande surpreendida fôra ela…
- Olá, Princesa!
Sentiu o coração saltar dentro de si. Aquela voz trazia-lhe tantas recordações… Seria possível? A sua memória recuava agora até ao rapaz mais bonito do “Liceu Salazar”, com olhos cor de avelã, sempre impecavelmente vestido e perfumado, com uma educação esmerada, um sentido de humor como não há outro igual, uma voz extraordinariamente meiga e bem colocada, e por quem ela tinha tido um fraquinho bem forte, antes de se apaixonar por aquele que agora a ferira de morte. Só que, na altura, este galã andava perdido de amores pela “Miss Liceu” desse ano, que, por sinal, nem lhe ligava nenhuma.
Naquele momento, a frase “Olá, Princesa!” teve o efeito de um tónico para a sua alma. Seria mesmo ele?
Virou-se e foi-lhe dado observar um veículo automóvel ligeiro de passageiros preto de alta cilindrada, cujo condutor, por detrás de uns óculos de sol “Ray-Ban” que lhe ficavam a matar, lhe sorria com aquele sorriso lindo, de que ela tão bem se lembrava, e que, em seu dia, a seduzira profundamente. Era um anjo caído do céu para lhe dar alento nesta hora difícil.
Foi, então, que ele, rindo, prosseguiu com o seu galanteio:
-Bom final de tarde, Princesa! Imersa em antigas recordações?
Acto contínuo, saltou do volante, veio ao encontro dela e deu-lhe um abraço do tamanho do mundo, que depositou nela toda a força de que ela precisava naquele momento. Continuava irrepreensivelmente charmoso, como nos tempos do “Liceu Salazar”. Até mais belo, porque mais maduro.
Ele contou-lhe que vivia agora no Porto, era engenheiro civil numa multinacional alemã e tinha vindo passar uns dias ao Maputo para celebrar um contrato de empreitada com uma sociedade comercial moçambicana, regressando a Portugal na manhã seguinte.
Nessa noite, jantaram juntos no restaurante do “Hotel Polana”, onde ele se encontrava hospedado.
Passados 12 dias, assim que ela regressou a Portugal, ele viajou até Lisboa para a visitar.
Foi o primeiro de incontáveis encontros de ambos na capital portuguesa e também na cidade do Porto.
Hoje, comemoram 24 felizes anos de casados, têm cinco filhos e três netos e riem-se sempre que recordam que, naquele final de tarde, no Maputo, ela estava mergulhada numa enorme desilusão de amor. Riem-se porque foi essa desilusão que lhes abriu as portas para a inexcedível felicidade que, desde então, lhes tem sido dada a viver.
Na vida, quando se fecha uma janela que deixava entrar a luz, abre-se uma porta que dá para o caminho que nos conduz ao sol.

Sem comentários:

Enviar um comentário