sábado, 11 de dezembro de 2010

“And when it's time for leaving Mozambique,
To say goodbye to sand and sea,
You turn around to take a final peek
And you see why it's so unique to be
Among the lovely people living free
Upon the beach of sunny Mozambique.”

Mozambique, by Bob Dylan and Jacques Levy


"Viagem a um tempo de sonho"

Prometera a Mia Couto que não haveria de morrer sem voltar a Moçambique. Fizera-o em Janeiro de 2001, numa tarde em que os rigores invernais da Beira Alta se tinham deixado suavizar por um eflúvio de subtil tropicalidade, mercê da presença do escritor em Viseu, para apresentação do livro "Mar me quer".
Catarina fizera questão de estar presente na conferência do escritor, cuja obra desde sempre admirara.
Ao olhar através dos olhos mensageiros de Mia, vislumbrou o mar de Moçambique, que abraça a fina areia branca das praias a perder de vista, e sorveu o bálsamo que exala da luxuriante vegetação verde saudada pelo sol em cada aurora. O mesmo sol que enche de luz e cor a vida das paragens longínquas e exóticas que, 27 anos antes, tinham visto Catarina crescer durante 9 meses, quando, no ano de 1974, estivera com os pais e a irmã em Nampula, por ocasião da mobilização do pai como major miliciano médico estomatologista ao serviço do Exército Português.
Ao beber as palavras do escritor em Viseu, sentiu ainda mais vivo o desejo de voltar àquele país.
Regressar a Moçambique tornou-se a sua neurose obsessiva de estimação, mas temia que, ao chegar a Nampula e ao acorrer à antiga Messe de Oficiais do Exército Português que, durante meses, a hospedara, a menina de 13 anos passasse por si, no seu passo apressado a caminho do Liceu Almirante Gago Coutinho, a olhasse de relance, e, sem a reconhecer, prosseguisse indiferente o seu trajecto.
Pior do que isso, sabia que seus pais já lá não se encontravam com o seu jeito ágil, com a pele lisa e com total ausência de calvície e de cabelos brancos e que, quando regressasse ao velho continente, a avó Joana já não se encontraria à sua espera, para, numa madrugada fria de Setembro, se fundirem ambas num caloroso abraço. Também tinha a certeza de que a avó não mais lhe enviaria aerogramas para Nampula, com "Um abraço cheio de saudade da avó que te adora.” É que, do alto dos céus, a avó zelava, agora, dia e noite, pela existência da neta, mas nunca ousaria desafiar o poder dos deuses enviando notícias.
Ainda assim, voltar ao passado em Nampula, para viver serenamente o presente e melhor traçar o futuro, tornou-se um imperativo categórico, não só de vontade, como também de consciência.
Saudades de um tempo passado? Não. Como Mia Couto disse um dia, não temos saudades de um tempo passado, temos saudades daquilo que não vivemos. Deixassem-na sentir, agora, em Moçambique, as emoções que, na altura, não tinham morado na menina de 13 anos: Penetrar no mar milenar e milionário de Moçambique e branquear a alma na espuma das águas! Sorver o perfume da terra fértil quando as chuvas de África a fecundam! Beber o pôr-do-sol em África - uma miragem dos deuses, que nos afaga o corpo e nos embriaga a alma! Pedir a um cometa que nos traga África na sua cauda, para que a possamos guardar para todo o sempre dentro de uma medalha e pendurá-la num fio junto ao peito! Sermos "África da cabeça aos pés", aproximando-nos, assim, de Noémia de Sousa e das outras divindades da terra! Entrarmos numa outra galáxia, lá, onde tudo é perfeito e o tempo é beijado por uma inextinguível luz divina! Porque África é luz!
Vários meses tinham voado desde aquele encontro com o escritor, quando um dia, ao entardecer, o universo se tornou subitamente pequeno para abrigar a emoção de Catarina espalhada ao vento. Ia empreender o tão sonhado regresso a Moçambique. As asas de um Boeing 767-400ER iam finalmente transportá-la ao velho porto de abrigo: Nampula.
Perseguia-a a ideia de roubar aos deuses a relíquia africana: a sensação única de que o tempo nunca acaba e a paz de espírito jamais escasseia.
Quando o avião aterrou em Nampula, Catarina chorou um Índico de alegria.
Reparou que a vegetação luxuriante que bordeja a estrada que liga o aeroporto à cidade, a recebeu com o mesmo brilho de outrora e que o sol de há 27 anos se fez menos escaldante só para ela. Um pássaro de fogo rasgou os céus, abrindo alas que anteciparam o cortejo principesco de Catarina, porque verdadeiramente princesa é a mulher que acredita que vai concretizar o seu sonho.
Ao chegar junto do imponente edifício branco da antiga Messe de Oficiais do Exército Português, Catarina viu seu pai, com o porte distinto de Tyron Power, e envergando a farda de oficial do Exército Português, sair da Messe, de braço dado com sua mãe, que levava sua irmã de 6 anos pela mão. Catarina vinha ao lado do pai e envergava uma saia amarela cheia de bolinhas encarnadas e uma blusa branca de malha de algodão sem mangas, e calçava socquettes brancas e sapatilhas encarnadas com bolinhas brancas. Era alta e delgada. Tão longe dos 83 Kg que pesava actualmente! Ria e saltitava. Entrementes, passou para o lado da irmã e segredou-lhe algo, após o que ambas desataram a "rir a bandeiras despregadas".
Sempre a saltitar, Catarina voltou para o lado do pai que lhe ensinava, enquanto ela repetia: "Alferes, Tenente, Capitão, Major, Tenente-Coronel, Coronel, Brigadeiro e General!"
Passou por eles o Dr. Bizarro, um tenente miliciano médico cardiologista, que, olhando para o pai de Catarina, lhe perguntou a rir: "Oh, Alcides! Queres casar a princesa com algum oficial do Exército?..." Catarina corou - ainda estava em idade de corar com estas brincadeiras -, e sorriu timidamente.
Um alferes e dois capitães, devidamente uniformizados, passaram e fizeram continência ao pai de Catarina.
Em frente, permanecia o altaneiro edifício do Quartel-General, do qual saiu um "Volvo" S80 TDI preto, conduzido por um soldado do Exército Português, transportando ao seu lado um cabo, e atrás, um brigadeiro. Junto da Messe, o cabo apeou-se, abriu a porta traseira da viatura, pela qual o brigadeiro saíu apressadamente, voltou a fechar a porta, seguiu o brigadeiro e, estugando o passo, alcançou a porta da Messe, que abriu, dando reverencialmente passagem ao brigadeiro, após o que também ele entrou.
Tudo estava igual. As acácias rubras e os jacarandás lilases irradiavam a luminosidade de outrora, continuando a inundar de cor a vida da primeira cidade militar de Moçambique, e as palmeiras ancestrais não tinham desistido de desafiar os céus.
Também os mainatos continuavam atarefados nas suas lides domésticas e de jardinagem.
Um deles – o Joaquim, que Catarina sempre guardara na lembrança como o melhor cozinheiro da região militar do norte de Moçambique, aproximou-se dela, ofertou-lhe um sorriso sem mácula e um ramo de rosas encarnadas sem espinhos, com o perfume inebriante de África. Na outra mão, trazia um livro que estendeu igualmente a Catarina e que esta aceitou.
Estavam ali todos. E Catarina estava no meio deles. Com tamanha bênção, Cristo tinha, também Ele, de estar ali.
O mainato sorria para Catarina com infinita doçura. Catarina tinha sido contemplada com o singular privilégio de conhecer o sorriso de Cristo: um sorriso imortal só para ela, no rosto mortal do mainato. Sentiu-se, toda ela, acariciada pela paz. O céu era ali! Leu o título do livro que lhe tinha sido ofertado pelo mainato: "Viagem a um Tempo de Sonho”. Teve vontade de lhe perguntar se esse tempo era ali. Mas, com o seu eterno sorriso celestial, o mainato desviara o olhar para a menina de treze anos que, nessa altura, caminhava de mão dada com o pai. Logo de seguida, os olhos do mainato, quais pérolas negras que bailavam entre duas peças do mesmo puzzle, valsearam desde a menina até Catarina e desta até à menina. Dos lábios do mainato desprendeu-se uma melodia celestial. Catarina olhou para a menina e ansiou que ela largasse a mão do pai e corresse na sua direcção. Queria afagá-la, asseverar-lhe que tudo iria correr bem, pedir-lhe que roubasse aos deuses as rédeas do tempo e crescesse depressa, porque iria ser imensamente feliz. Mas, ao mesmo tempo, não lhe podia fazer esse pedido, porque sabia que, quando ela crescesse, veria partir a avó Joana para não mais voltar.
Subitamente, o tempo alterou-se, dando lugar a uma violenta chuva seguida de tempestade tropical. A terra abriu-se, cavando um gigantesco fosso entre Catarina e a menina de treze anos, que foi imediatamente inundado pelo Índico. A menina esfumou-se na bruma do tempo, arrastando consigo os pais e a irmã. O livro "Viagem a um Tempo de Sonho”, que Catarina apertava contra o peito, desprendeu-se suavemente das suas mãos e, ondulando no ar, transformou-se num pequeno coração encarnado que mergulhou nas águas cálidas de Moçambique, onde permaneceria para todo o sempre.
O marido de Catarina chegou a casa com as filhas do casal. Catarina acordou com a alma aconchegada pelo perfume divino de África. O velho disco de vinil de Gilbert Bécaud continuava a tocar. Tinha passado uma hora desde que se reclinara na cadeira de baloiço do terraço da casa da praia, a ler "Mar me quer". Uma hora desde que as suas pálpebras tinham cedido ao cansaço e a sua alma mergulhara numa outra dimensão.
Em Nampula deixara para sempre o seu coração. Em troca, trouxera consigo a imagem viva de paragens que pertencem ao Olimpo. Sempre tinha conseguido roubar aos deuses o maior tesouro, porque o único de que não mais alguém a poderia desapossar: a sensação irrepetível de que o tempo é beijado por uma inextinguível luz divina que nos invade de paz.
Voara nas asas de um sonho e chegara a porto seguro, do qual voltara milionária de felicidade.
Prometera a Mia Couto que não haveria de morrer sem voltar a Moçambique, e voltou.
Hoje, a menina de treze anos feita mulher, tem uma certeza que lhe dá alento: Moçambique será imortalizado pelo Escritor que, no seu jeito de magia intemporal, brotará a cada instante da terra incandescente e emergirá do "mar me quer" do seu “inteiro país", envolto numa aura de estórias "abensonhadas."

1 comentário:

  1. Mia Couto é na realidade um escritor com uma linguagem mágica! Adoro lê-lo!

    E achei este seu texto lindo! Uma homenagem literária de muita qualidade!

    Sensibilizada pelo seu olhar em 'fragmentos'!

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